The Project Gutenberg EBook of A Guerra, by Jaime de Magalhães Lima This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: A Guerra Depoimentos de Herejes Author: Jaime de Magalhães Lima Release Date: October 14, 2008 [EBook #26915] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A GUERRA *** Produced by Pedro Saborano. A partir da digitalização disponibilizada pela bibRIA. JAIME DE MAGALHÃES LIMA A GUERRA DEPOIMENTOS DE HEREJES F. FRANÇA AMADO, EDITOR COIMBRA. 1915. A GUERRA Composto o impresso na Tipografia França Amado, Rua Ferreira Borges Coimbra. JAIME DE MAGALHÃES LIMA A GUERRA DEPOIMENTOS DE HEREJES COIMBRA F. FRANÇA AMADO, EDITOR 1915. Prologo Um direito o nosso tempo conquistou plenamente--o direito de heresia. Muitos outros tentou proclamar, desde o meiado do século XVIII até hoje. Pela sua vitória se esforçou e sacrificou. Mas, se muitos quiz e por momentos imaginou possuir, quasi outros tantos surgiram e se apagaram com a rapidez e mágoa com que invariávelmente se desfazem ilusões e esperanças mal fundadas. O direito de heresia, o direito de discutir, contestar e negar todas as ideias por qualquer modo dominantes, todas as convenções estabelecidas, todos os dogmas, todos os principios e todos os preceitos da religião, da filosofia, da arte, da sciencia, da politica, e de quanta afirmação o nosso pensamento sonhe ou imponha, quer na vida concreta, quer na vida puramente especulativa, o direito que implica a faculdade de regeitar no govêrno da nossa actividade espiritual e material toda a autoridade independente de restricção e de crítica--êsse logrou, porêm, prevalecer atravez de todas as vicissitudes a que o tiveram e teem sujeito multiplos e vigorosos despotismos, sempre fáceis em renascer das próprias cinzas. Abolidas as divindades, as sagradas como as profanas, as que se adoram nos templos como as que se lisongeiam nos palácios, é legítimo duvidar da crença religiosa como da crença política, podemos sem ofensa dos homens e respeitando a nossa consciência desconfiar de muito civismo e de muito patriotismo envelhecidos e envilecidos por diversa corrupção, podemos duvidar da justiça, e até da dignidade, de muito orgulho nacional, pervertido por íntima ruindade. É isso tão legitimo, de uma tão genuina fidelidade à razão, como o desdem das iras olimpicas de Jupiter, ou a revolta contra as fogueiras da Inquisição, ou a libertação da tirania de todos os cesares, sejam êles coroados por direito divino ou aclamados pela insensatez e pela ingenuidade da soberania popular. «Libertamo-nos dos abusos do velho mundo; carecemos de nos libertar das suas glórias», disse Mazzini. E isso, que algum dia poderia parecer blasfemia do revolucionário, encerra hoje apenas uma modesta e incontestada insinuação e autorização de livre exame. Muito heroismo houve que o passado glorificou e o futuro converterá em ignominia, muito fraqueza vilipendiada o tempo nos tornará em merecimento e honra, muita virtude foi crime, muito crime foi santidade, muita prudência foi loucura, muita loucura foi acerto. O cataclismo de 1914, turvando em ansiedade todos os corações, onde corações encontrou, ainda os mais débeis, foi um ensejo tremendo dêsse direito de heresia que uma lenta e progressiva insistência anterior havia constituído e estabelecido firmemente em o nosso espirito; foi um ajuste de contas correspondente à magnitude sem precedentes da guerra que êle soltou. Verdadeiras religiões politicas e sociais, como a ordem, a riqueza, o nacionalismo, o socialismo, o resplendor militar, as egrejas, o império, e até o próprio cristianismo, foram chamadas a uma revisão sevéra dos respectivos valores e a uma determinação dos seus caracteres e responsabilidades; e dessa revisão sairam profundamente alteradas na sua nobreza, na sua razão e pureza, e na sua mais humilde utilidade. Palavras que eram um paládio transfiguráram-se em espéctros, muito resplendor se apagou, muita treva se iluminou, muito poder se arruinou, muito fetichismo se desfez. De algumas dessas heresias, que tenho por fundamentais e destinadas a uma influência incalculável no futuro das sociedades humanas, colhi nestas folhas umas breves notas, na esperança, senão na certeza, de que não pouco poderão esclarecer, e sobretudo fortalecer, nestas horas de angustia, os que as meditárem. Umas foram já impressas no _Diário de Noticias_, de Lisboa; outras, o maior número, vem agora a público pela primeira vez. E de tal modo me alarguei ceifando em seára alheia, que, constituindo as notas que se referem à _Arte de Gastar_ uma versão quási completa do magnífico opúsculo do sr. E. J. Urwick, julguei-me obrigado a solicitar do editor sr. Humphrey Milford a autorização necessária para a tradução, que êle bondosamente me concedeu, com uma gentileza pela qual confesso aqui o meu reconhecimento. Não vão os tempos para profecias. Tão profundo é o tumulto em que o mundo se atropela desvairado, que todas são perigosas e se arriscam a um desmentido rápido e radical. Foi a guerra iniciada em nome da liberdade dos pequenos povos e do respeito da justiça entre os homens e as nações. Mas não teremos que nos surpreender se, chegada a hora da paz e da vitória, forem os primeiros despotas aqueles mesmos que clamaram pela libertação dos oprimidos e no seu clamor conduziram os exercitos às batalhas. Não teremos de que nos surpreender, se esse for o epílogo desta inaudita desgraça. Em primeiro logar, a guerra é só por si uma escola de despotismo para vencedores e vencidos; é, como agora aconteceu em todos os paises interessados no conflito, sem excepção, a suspensão absoluta de todas as liberdades e direitos individuais, a absorpção de todas as forças e de todas as actividades sociais, uma violência sem limites, involvendo vidas e bens em uma temerosa vertigem do estado. De uma tal situação ficam resíduos; de semelhante incêndio restarão, pela força das cousas, ruínas fumegantes. O que era temporário tornar-se-á facilmente permanente, máu foi ter-se fundado; o que se decretára para salvação da republica, astuciosamente se continua para vantagem das dinastias e das oligarquias. Houve uma fermentação cuja vitalidade reanimou muitos elementos mortos e dormentes e cujos efeitos vão muito alêm do periodo que a levantou, compreendendo por simples contágio muita cousa que lhe era estranha. Depois, convém não esquecer que a torrente dos impulsos económicos pesará duramente na vida das nações empenhadas na guerra. A ruina foi de uma vastidão insondável. A riqueza que por diversos modos se aniquilou na guerra, excedeu quanto os cálculos podem atingir e quanto os números podem somar. Não há arimética possível para volumes desta largueza e complexidade. Finda a guerra, êsses valores perdidos hão-de, naturalmente, procurar uma restauração pura e simples, uma reintegração de posse, por processos e em termos inteiramente conformes com o estado anterior ao desastre. E êsse estado económico, que foi uma das causas mais poderosas desta calamidade que nos aterra, é fundamentalmente despótico, e nem por outro modo tem probabilidades de subsistir. Um publicista de grande autoridade na imprensa inglesa, o professor L. P. Jacks, escrevendo no _Hibbert Journal_ sôbre «a tirania das cousas que são meramente cousas», mostrou como a mecânica e os maquinismos, «primitivamente destinados ao serviço dos homens, se tornaram a muitos respeitos o seu senhor.» «O militarismo e o industrialismo, como hoje existem na Europa, teem a sua origem em uma fonte comum. Ambos esclarecem a inclinação dada ao espírito humano pelo culto do maquinismo, que tão extensamente se tornou dominante na vida espiritual do mundo ocidental.» «Ganha terreno a suspeita de que o industrialismo deve afinal ser contado, em si e por si, entre as causas positivas da guerra. Acrescentando a riqueza, a ostentação e o orgulho dos povos, não servirá para acentuar as suas rivalidades, para cavar mais fundas as suas invejas, e para inflamar as suas paixões predatórias?» Ora não é de crêr que o industrialismo, causa de guerra e dos seus despotismos, abdique de boa mente do seu império e renuncie às armas com que o sustenta, mórmente depois de ter sido o soldado mais forte da guerra, que se fez mais nas fábricas e nas fundições monstruosas do que nos campos de batalha, onde os soldados empregáram os engenhos de morte que as oficinas e os laboratórios criavam e lhes mandavam. Se ao industrialismo, de sua natureza despótico, que com grande cópia de alegações ha-de reclamar o antigo logar, juntarmos as urgências financeiras, ansiosas por uma organização económica fácil e abundantemente colectável, se houverem de ser consideradas as necessidades fiscais dos estados esmagados com dívidas fabulosas que se contraíram rapidamente, mas que levam anos a saldar, muitos anos e muito penosos, não será de estranhar que a guerra, no seu seguimento imediato, robusteça aquela constituição do trabalho que, seguramente, por uma já longa e amargurada experiencia, sabemos ser a mais perfeita negação da liberdade, a mais fatal das opressões. Todavia, embora quaisquer profecias se achem evidentemente sujeitas a formais desenganos, ousarei dizer que alguma cousa é certa desde já nos resultados da guerra. Podem as instituições políticas e os sistemas económicos ser arquitetados e fundados como melhor convenha aos caprichos dos reis, à fortuna dos homens, à sapiência diplomática e aos seus sortilégios cabalisticos. Póde ser que, afinal, a guerra pareça, nos seus efeitos concretos, radicalmente contrária aos sonhos de liberdade que inflamaram os seus incendios e precipitaram as suas hecatombes. Mas determinou uma renovação da consciência, uma filosofia, uma moral, um modo de ser economico, um renascimento íntimo, que são de durar e crescer, invulneráveis às artes dos imperadores e ao poder dos vendilhões, superiores ao seu domínio. A catástrofe de 1914 «não foi na realidade um acontecimento que mudou o mundo. Foi uma grande mudança do mundo que rematou em um grande acontecimento, cujo final ainda não é conhecido de homem algum[1].» Foi essencialmente uma agonia espiritual perante a qual importam pouco e serão transitórias as alterações ou a persistência da ordem material do mundo. O poder de revelação deste cataclismo excede muito a força de destruição das edificações materiais que pulverisou. «A verdade é que entramos em relações com um novo mundo que até aqui nos foi desconhecido. Poderes espirituais até hoje invisiveis aparecem no seu ambiente. Digo «invisiveis», sómente porque a sua acção se ocultava aos homens emquanto êles andavam imersos nos cuidados do bem-estar material. E agora, neste mesmo momento em que o mundo se alaga em sangue, e uma tormenta de fogo, destruindo tudo na sua passagem, ameaça converter em pó e cinzas o nosso bem-estar--eis que os cegos vêem e os surdos começam a ouvir. Obscuramente pressentimos a aproximar-se a vitoria do espírito sôbre o cáos. Quasi podemos dizer que uma scentelha desprendendo-se da tempestade universal nos revelou subitamente um novo aspecto do mundo... Além do inferno que se desencadeou sôbre a terra, distinguimos a presença de um Poder mais alto, sôbre o qual o inferno não prevalece; e é a êste poder mais alto que o futuro pertence. A sua acção é sempre a mesma--no indivíduo, na nação e na humanidade. Afirma a vida contra a morte e a integridade daquilo que vive contra as forças que o dissolveriam. Vimos êste Poder incarnando em uma longa sucessão de aparições que nos surpreendem. É precisamente nesta antecipação da sua conquista final no futuro que encontramos a inolvidável significação da guerra presente[2]». Progresso, só no espírito existe. O materialismo de que a Alemanha foi neste momento um estupendo representante, esplendido em seu género, valerá tanto ou tão pouco nas cousas da terra como nos reinos do puro pensamento. «Parecia dominar como filosofia na hora presente. Tinha a seu favor uma certa força. Estamos em um mundo material, e os que estudam o organismo corporeo andam sujeitos a virem gradualmente a uma espécie de conclusão de que êle é a existência inteira. Por isso erram. A matéria é muito importante, mas por modo algum é a totalidade do universo. Há dois aspectos do universo, o espiritual e o material, e um tem de ser aproveitado pelo outro. Não póde admitir-se que o aspécto material domine; tem de servir as necessidades do espírito. A nota do universo material é repetição; a nota do universo espiritual ou psiquico não é, porêm, repetição, mas progresso. Isto se vê na história do nosso próprio mundo--primeiro os animais inferiores, depois os animais superiores, e por fim o homem. O que depois disto virá, não o sabemos ainda, mas estamos longe da perfeição. Deve ser qualquer cousa melhor. O próprio homem se tornará melhor sôbre a terra. E, assim como para o indivíduo, o progresso da evolução não tem fim. Temos de compreender que somos todos seres eternos, que temos um destino infinito deante de nós, ou para cima ou para baixo, conforme o nosso caracter e atributos. Esta é a nota do universo espiritual. O seu resultado é a vida, e a vida cada vez maior. A soma de vida no universo parece crescer continuamente, emquanto a soma de matéria e energia não cresce; esta é constante. A inteligência póde crescer; póde crescer a felicidade; póde o conhecimento espiritual atingir alturas presentemente inacessiveis[3]». Apliquemos à crise presente êstes princípios, que são universais. Procuremos um balanço exacto e consciencioso das alterações que a guerra trouxe e nos deixou. Logo veremos a profundeza do seu alcance e os seus lucros positivos um desenvolvimento de sensibilidade moral e religiosa nas sociedades cultas, como jámais se viu, uma acentuação de tendências de liberdade, de justiça, de amor e de religiosidade que acrescentáram em proporções assombrosas os tesouros da vida do espírito, único progresso possível, único que importa o domínio da matéria, mesmo quando a materialidade se reputa fortalecida e inexpugnável pela solidez das suas filosofias e sistemas, pelo poder das armas e da riqueza, e pela prepotência triunfante e orgulhosa sôbre as infinitas escravidões que a servem e são a sua mais funda aspiração e o seu mais eficaz instrumento de reinar. Mais prolongada no tempo e nas conseqùências, sobretudo infinitamente mais fecunda do que a breve e incerta jornada militar, política e económica em que tiver de rematar os combates, será a jornada moral e religiosa a que a guerra nos conduziu. Não há poderes do mundo que a perturbem. Porventura será mais activa quando êles menos a favorecerem. A necessidade de reacção acelera-a e fortifica-a. Talvez então, quando fôr a seu termo, as guerras nos pareçam, além da «futilidade» que hoje são, uma infantilidade cruel, de que nos lembraremos com a mesma opressão do coração que nos mortifica, se na mente nos passa a recordação dos ninhos que na meninice destruimos e das vidas que por capricho sacrificamos. E na humanidade chegada à edade da razão a _Eneida_ será porventura um conto para crianças, e os herois que nos exaltaram perder-se-ão em trevas distantes como aquelas em que entrevemos a rudeza da edade da pedra. Convulsões dum enfêrmo Quando em 29 de julho de 1914 a Alemanha enviou à Russia uma declaração de guerra, o mundo, acordando tragicamente da sordidez indolente e gananciosa dos interesses baixos e das corrompidas comodidades, enervado por longos anos de paz empregados em abrandar a fúria insaciável dos seus prazeres e complexas sensualidades, julgou no auge da indignação que um pensamento monstruosamente scelerado meditára e consumava um «crime contra a civilização», o maior e o mais odioso que jámais se sonhára e praticára na história da humanidade. Declaradamente se armavam, havia quási meio século, os grandes poderes militares da Europa; engrandeciam os exércitos, acrescentavam as armadas, acumulavam os canhões, amontoavam munições e edificavam fortalezas por modo nunca visto. Mas a confiança na autoridade e eficácia do velho preceito que nos mandava preparar para a guerra se queriamos a paz, sustentava uma segurança profunda e a tranquilidade, como certeza, de que tão dispendioso e aturado forjar dos arsenais era apenas um côro de louvores à glória da paz, soberana, possuindo o mundo, conquistando-o dia a dia pela sua fascinação e ainda pelos engenhos de guerra que prometiam uma inviolabilidade formidável a quem os soubesse fabricar e usar. Depois, não estava demonstrado que a guerra importava a ruina de vencedores e vencidos, e era de todo incompatível com a sustentação e prosperidades das riquezas industriais e mercantis que a custo e com enorme esfôrço haviamos criado e nos absorviam? Os pensadores, os economistas e os homens de boa fé e melhor razão não tinham provado que só por demência, e jámais por conveniência ou glória de uma nação, fôsse ela qual fôsse, se poderiam desencadear ou consentir tão insensatos e pavorosos cataclismos? A paz era reconhecidamente o mais lucrativo dos negócios, emquanto as armas significavam a mais sólida das garantias da amizade entre os povos. Apesar dos vaticinios de profetas tenebrosos impenitentes, que tambêm os havia e não cessavam de agourar desgraças, tendo por fatal a hora terrível de uma guerra europeia, o mundo ia remexendo os seus oiros e os seus estercos, os seus bens e as suas devassidões, convencido de que a bonança, uma perene bonança orgiaca, era de ora em diante a lei da vida. De facto, a guerra, lançando o fogo subitamente a todos os paioes, surpreendia-o. Era a subversão das suas melhores crenças. Não podia crê-la. Quem ousava lançar a terra inteira nessa insondável voragem?!... A guerra, no primeiro momento dêsse aflitivo e desvairado despertar, era unicamente o fruto amargo da soberba lugubre dos que governam as nações, alimentada na obscuridade das chancelarias, moralmente obtusas e empedernidas e ignobilmente ávidas e crueis, de todo desprendidas do zelo e respeito da fortuna dos povos que um desapiedado egoismo lhes fazia ignorar; e a traição aos arrebatamentos da ventura em que viviamos era executada e proclamada pelo braço e pela bôca de três imperadores, um caduco na senilidade própria dos seus anos, o outro demente de raça e de vaidade, e o terceiro não muito são, sujeito a acessos de melancolia. Eram êles que na mais atroz loucura gerada de imaginárias ambições lançavam uns contra os outros homens de todos os continentes, por igual escravos do trabalho, que realmente se amavam e não tinham motivos para se desamarem, e antes sentiam razões poderosas para se auxiliarem e unirem. Eram êles os reus da atrocidade estupenda que ia cobrir de desolação e de cadáveres o chão que Deus nos dera e nós queriamos para criar e cultivar o pão, e os filhos e a arte e a religião, toda a fortuna, toda a dignidade e toda a glória da nossa espécie. Poucos dias, porêm, haviam decorrido desde a primeira hora de espanto e aversão, e uma vaga consciência começou a mostrar que sob o impulso e comando dos imperadores e dos generais, sob as cobiças das castas militares e dos seus chefes, inflamando-as e explicando-as, senão legitimando-as, entre o estrépito dos cavalos e dos canhões, havia o conflito das raças, uma diversidade e uma incompatibilidade de aspirações que se excluiam e por condição estavam sem remissão destinadas a chegarem à agudeza dos combates em que se encontravam. Bastaram as primeiras batalhas e as primeiras vitórias dos alemães na Bélgica para que uma luz súbita mudasse todos os apectos. As primeiras atrocidades que os exércitos da Alemanha cometeram, perante o desrespeito dos tratados confessado com um extremo impudor e a perfídia cínica em sua hedionda nudez, perante a hospitalidade traída, construíndo fortalezas ocultas e pondo espiões onde com amizade eram acolhidos, perante o morticínio de velhos e crianças, o insulto e injúria das mulheres e a destruìção e saque dos mais preciosos tesouros do espírito humano, mal se revelou a animalidade barbara que alimentava a fúria germanica, compreendeu-se a que tremendo duelo eramos chamados. E, assistindo à ressurreição dos sentimentos e processos que ha longos séculos tinham movido as hordas teutónicas, de tenebrosa e amaldiçoada fama, e se julgavam para sempre condenados e banidos, e confrontando-os com o espírito religioso de abnegação e bondade que animava o slavo, com o respeito, decôro e dignidade que é honra e brazão do mundo britânico, e com a gentileza e rectidão que em toda a conjunctura caracteriza o espírito gaulez, estremados assim fundamente os campos ao fim de um mês de hostilidades, a experiência estava feita e o desengano acabado, e o primeiro ministro da Inglaterra, Asquith, no discurso magistral que pronunciou no Guildhall, podia dizer com o aplauso retumbante da Grã Bretanha e de todo o mundo culto:--«Não é um conflito meramente material, é tambêm um conflito espiritual. Das suas últimas conseqùências se verá que mais tarde ou mais cedo dependem tudo o que contêm promessa e esperança, que conduz à emancipação e mais completa liberdade de milhões que constituem a massa do género humano». Quem tinha olhos para ver, entendimento para considerar e sôbretudo coração para sentir, logo sem a menor sombra se convenceu de que, envolvido no tropel das ambições políticas e das rivalidades militares, o que rialmente as precipitava em um embate temeroso era a incompatibilidade, irreconciliável e ardente, entre a fôrça e o direito, entre a brutalidade e o respeito, moderação e tolerância, entre as cobiças da sordidez e o desprendimento da nobreza, entre o cinismo e a crença, entre a liberdade e o despotismo, entre a boa fé e a deslealdade, entre o orgulho e a modéstia, entre a candura e a corrupção, entre o Deus do sacrificio à caridade e à bondade e o Deus das batalhas, da avareza e do ódio. Nem sequer era uma disputa de doutrinas e de sistemas; era e é uma oposição violenta de temperamentos, uma divergência de modos de ser sociais, morais e religiosos entre si antipáticos até à exclusão mútua. Era Tolstoi contra Strauss, Ruskin contra Bismarck, Voltaire contra Treitschke, o monismo degradante de um Ernesto Haeckel contra o dualismo espiritualista, nobre, credor inflexível de responsabilidades, de um Alfredo Wallace; era a fé, a graça, a justiça e a liberdade contra o scepticismo, a bruteza e o despotismo, embora os primeiros se apresentassem desprotegidos de previsão e astucia e os últimos viessem servidos pelo estudo, pelo metodo e por subtil engenho. Aos pensadores e erúditos não foi difícil esclarecer-nos, demonstrando que vinham de longe as incompatibilidades cujas energias contrárias, agravadas e acumuladas no correr dos anos, chegavam em uma hora angustiosa a um combate de vida ou de morte. Reeditaram-se e notaram-se, com a aureola das profecias, palavras de Ruskin nas quais a intuição penetrante do génio muito cedo apontou a distância que havia entre o carácter germânico e as tendências britânicas. Já em 1859 Ruskin falava, em carta a um amigo, do «intenso egoismo e ignorância do pintor alemão moderno (na sua obra)» que «era indizível no que tinha de ofensivo. A eterna vaidade e vulgaridade mascarando-se de piedade e poesia, a surdez profunda a toda a beleza rial, inchada em abomináveis caricaturas daquilo que êles imaginam ser o carácter germânico, a absorpção de todo o amor de Deus ou do homem na impaciência de aplauso» feriam-no e repugnavam-lhe. Na França ainda êle achava certa paixão de beleza, embora não fôsse senão na faina de um açougue ou na concupiscência; «mas o alemão era por demais vão para se deliciar no quer que fôsse». Nem tinha mudado de sentir em 1874, não obstante muito haver mudado a reputação do valor alemão nas coisas do mundo. Então escrevia:--«As bençãos são apenas para os dôces e misericordiosos, e um alemão não pode ser uma coisa nem outra; nem sequer compreende o que essas palavras signifiquem». «Egoista nos mais puros estados de virtude e moralidade», «não ha sôma de saber que possa jámais fazer modesto um alemão». De modo que, quando os alemães se apossam da Lombardia, bombardeiam Veneza, roubam-lhe os quadros (de que não podem compreender nem um traço), e inteiramente arruinam o país moral e físicamente, deixando atraz de si miséria, vicio e ódio profundo, onde quer que os seus malditos pés hajam pisado. Foi precisamente o mesmo que fizeram em França--esmagaram-na, roubaram-na, deixaram-na na miséria do desespero e da vergonha, e fôram para casa a lamber os beiços e a cantar «Te-Deus». O almirante Von Tirpitz, interrogado pelo senador Beveridge, homem público muito popular nos Estados Unidos da América, disse-lhe que «o povo alemão se tornára feliz e prospero pelos velhos métodos de duro trabalho, vida limpa e pensamento claro. Tomára os mercados da Inglaterra, porque o inglês insistia nas suas férias, nos seus dias livres em cada semana e nos sports». Querendo glorificar o temperamento alemão e explicar as suas conquistas, depreciando ao mesmo tempo a vida inglesa, estabelecia um confronto no qual se definiam admiravelmente o caracter e tendências dos dois povos em guerra. Vive um para enriquecer; nisso se absorve e consome absolutamente, empregando um talento e arte que são maravilha. Quer o outro férias que lhe são indispensáveis para a contemplação e intimidade da natureza e para cultivar aspirações apolineas; e disto fez uma religião. Renovaram-se as lições do passado; e pelos factos presentes compreendem-se hoje em toda a extensão os clamores, escritos e pregações dos profetas, guias e educadores da Alemanha moderna, entre os quais ficará de triste celebridade a obra de Bernhardi, cujo pensamento fundamental é de uma simplicidade incomparável:--«A Alemanha tem nos destinos do mundo uma alta e divina missão, espalhar a sua cultura, levar a cabo o renascimento dos homens e das sociedades na cultura germânica e pela cultura germânica, e o processo único de cumprir êsse destino religioso é o ferro e o fogo, o poder militar e a aniquilação radical de todos os povos que não sejam da opinião do missionario vencedor ou não se sujeitem à sua despótica vontade e império. A cultura, no seu derramamento, começaria esmagando a França que, sendo a inimiga mais inquieta e perigosa pela agilidade e fascinação do seu espírito, é a primeira que à Alemanha cumpre suprimir para capazmente desimpedir o caminho. Rematava nisto o bismarkismo, talvez interpertrado muito àlêm ou fora dos seus princípios. Concluia pela prussificação de toda a Alemanha, afagada, soprada e insinuada no sangue teutónico e nos afins por nascimento ou inclinação, por todas as universidades, todos os prélos e todos os mestre-escolas, e divulgada aos quatro ventos, em todo o globo, por enxames de caixeiros viajantes transportados em navios sumptuosos com matrícula em Hamburgo. Levou tempo a fazer e deu muito trabalho essa nova Alemanha. Para isso foi necessário arrazar, como alegremente se arrazou, até aos alicerces, aquela outra Alemanha gloriosa, dos tempos em que militarmente era vencida, a Alemanha de Kant, de Lessing, de Goethe e de Beethoven, do tempo em que, toda impregnada de idealismo, de sabedoria, arte, ingenuidade, simplicidade e anceios de liberdade, tinha menos sciência de laboratório e mais sciência do coração, e não sabia mentir, intrigar, corromper e oprimir. Mas isso se fez completamente. Não falta entre os seus filhos quem, vendo maguadamente e sem paixão a situação, termine por confessar que os alemães «deixaram de ser uma nação de pensadores, poetas a sonhadores e agora só procuram o domínio e exploração da natureza... Conservaram um harmonioso equilíbrio entre o desenvolvimento económico e o desenvolvimento moral como algum dia sucedeu com os gregos? Não; com o enorme crescimento da riqueza negras sombras caíram sôbre a vida nacional. Na nação como no indivíduo, vemos com o crescimento da riqueza o decrescimento do sentimento moral». Nem mesmo Nietzsche, que, isento de sentimentalismos e branduras, não adorou pouco a fôrça e uma robustez pagã, nem êsse poupou à cultura alemã o mais amargo desdem, insurgindo-se contra essa sua «obscuridade» e «nausea», que «todos os deuses aprenderam a temer. Se alguem quizesse vêr a alma germânica demonstrada «ad oculos», que observasse o gosto germânico, as artes e os modos germânicos. Que grosseira indiferença pelo gosto!» Para «todo o leitor que tivesse um «terceiro» ouvido», dizia, eram «uma tortura» os livros escritos em alemão, «sem tom, sem ritmo nem cadência». O próprio alemão lia «mal», negligentemente arrastado. Para ser lógico, o alemão tinha de descer a toda essa dureza e de varrer do espírito tudo o que não significasse meramente a fôrça e poder de subjugar físicamente. Outra coisa não era de prevêr. As virtudes da caserna aborrecem e cortam o desenvolvimento dos subtis e eternos encantos das academias, embora êsse comércio de sentir e pensar e dizer, que só em si se alegra e alimenta e se atribui a delicadeza da vida e muito da sua grandeza, valha muito no conceito dos homens e na sua felicidade, sem embargo de ser ignorado pelo militarismo, mercê da sua natural rebeldia no conhecimento de qualquer coisa estranha à arte da brutalidade e da chacina sábiamente organizadas e condecoradas. E esta Alemanha bismarkina, militarisada até à medula dos ossos, materialisada em todo o sentido, purgada, em absoluto, de influências idealistas, fazendo da disciplina, obediência, ordem e comodidades a razão última da nossa existência, reduzida a um rebanho de animais bem ensinados e bem mantidos, de pêlo luzidio e músculos titânicos, prontos à voz e dóceis ao chicote, esta Alemanha edificada de fresco e tendo posto na caserna a bandeira que arriou da catedral gótica e dos paços da cidade, tingindo-a de novas côres, surpreende-se, muito sincera e candidamente, se o mundo lhe significa pela inimizade que detesta a sua cultura. Não sabe a Alemanha explicar que haja nações civilizadas contra ela unidas com os povos da Rússia, semi-bárbaros no seu conceito. Como sujeitam a Europa ao risco da sua invasão e predomínio, chamando-os e admitindo-os, em pé de igualdade, de portas a dentro dos seus velhos palacios?!... Pasma desta infidelidade à sua cultura e outra cousa não compreenderá, pois, destituída de todo o sentimento verdadeiramente cristão, não percebe os laços que juntam os povos educados no Evangelho, fazendo do Evangelho a razão suprema da existência; e outros não há que mais profundamente o sigam e nêle creiam do que a Grã-Bretanha e a Rússia, apezar de viverem sob instituìções políticas opostas em larguíssima escala. Porque deixou apagar todos os impulsos íntimos do amor, trocados pelos regalos do estomago, não atinge que aquilo que os povos aliados seus visinhos e inimigos correm a combater, é exactamente a cultura alemã, esta aspiração que reduziu a fortuna e contentamento da humanidade a comer bem, beber melhor, dormir quente e descansado, andar agasalhado, ter uma velhice farta e tranquila, remédios, médicos e bons hospitais nas doenças, habitações esmeradas, e gaz, electricidade, caminhos de ferro, muitas oficinas, cinematógrafos, telefones e gramofones, e quanto, e sómente quanto, se paga a dinheiro nos mercados e se encomenda nas fábricas, sendo tudo isso regido por uma política e por uma mecanica administrativa que na precisão matemática em nada difere das máquinas de aço e que pelas suas potentes alavancas reduziu o homem à mísera condição de matéria prima, questão de número, volume e qualidades físico-químicas, tal qual o minério que se tirou das profundezas da terra. Não concebe que foi o extremo fastio dessa cultura, em que tudo foi cultivado menos a liberdade e o amor entre os homens, êsse reino incontestado da alma, o que impeliu para a guerra as raças que o adoram, outro não suportam e o vêem ameaçado: não concebe que entre exércitos que, como o alemão, deixam, por onde passam, uma esteira infinita de garrafas vasias, e os que, como o da Russia, proìbem o alcool entre as suas gentes, sacrificando para isso os melhores rendimentos do tesouro pùblico, não concebe que só isso seja informação suficiente de que interesses morais estão em jogo no que aparentemente os incautos tomarão apênas pela guerra das ambições dos reis e das castas políticas e militares. Nem por sombras imaginará que estas lutas de vida ou de morte são as convulsões de uma civilização enferma de inanidade religiosa e de gôso, cansada do peso da cultura absurda das materialidades, caída em um desespero febril de libertação dos germens mórbidos que lhe invadiram o sangue e lhe converteram a vida em tormento. Se me quizerem contraditar, dir-me hão que a religião, e muito em especial o cristianismo, tem na Alemanha os seus historiadores mais profundos e os estudiosos mais penetrantes. Não pouco terão êles concorrido para manter acesos, ao abrigo dos vendavais da filosofia racionalista, os fachos do mais sublimado idealismo. O que é incontestável, reconheça-se. Simplesmente convêm advertir e ponderar que a «sciência» religiosa alemã, aliás assombrosa, é uma cousa, e a «emoção» religiosa inglesa e o «ascetismo» russo são outra cousa; e o que nas margens do Reno é um valor intelectual, conclusão de silogismos, demonstração de textos e arquivos, elemento de compreensão do mundo e dos homens, é fora dali, em terras suas inimigas, um valor moral, fundamento e motivo de proceder nas relações individuais e sociais. De modo que o que algures se tornou objecto de curiosidade, sem duvida salutar e benéfica, que se cultiva de mistura com todas as outras culturas, é em paragens próximas uma fôrça tão misteriosa como soberanamente poderosa, obedecida superiormente a todas as outras fôrças a que o homem está sujeito. E ai estará a razão pela qual a Alemanha, sendo país de muita religião e teologia escolástica, práticamente pouca religião encontrou, e essa muito acanhada e escassa, fértil em disciplina e activa em política, mas tão pobre de fé que autorizou e reclamou, em proclamação dos seus sacerdotes mais graduados, a vingança a que a Áustria devia sujeitar a Sérvia porque um principe fôra assassinado. Um nosso prelado que conhece o sertão africano e aí tem exercido a sua missão sacerdotal com uma dedicação exemplar, contava-me há pouco que o negro prefere o domínio português ao domínio alemão, porque, no lúcido instinto que o não engana, considera que, quando o preto tem culpa, ajoelha, põe as mãos, e o branco, se é português, perdôa, e, se é alemão, castiga sem dó nem piedade, como se perdão não lhe houvesse implorado. Isto compreendeu o negro e não o compreendeu o alemão no aviltamento moral da sua maravilhosa cultura, em que a misericórdia não teve lugar; e por isso é bem de crêr que o negro compreenderia o que o alemão não alcança, quando lhe dissessem que a guerra que se espalhou no mundo e o inunda de sangue e de dôr, é a guerra entre os que perdoam, quando os delinqùentes ajoelham, e os que não sabem perdoar, nem mesmo em face da mais submissa humildade e contrição. Alguma cousa nos diz que não estão em êrro aqueles que anunciam como fruto desta guerra tremenda uma renovação de todo o nosso modo de ser social. Ousarei até acrescentar que essas conseqùências últimas da guerra, mais do que esboçadas, acentuando-se já clarissimamente em pontos essênciais, são certas e inevitáveis, independentemente da vitória das armas. Desde a lição formidável da queda do império romano, abdicando das suas velhas fôrças morais, das que considerava fundamentos da sua austéra e cruel grandeza, e entregando as rendidas a um poder mais alto, à inspiração cristã, desde então nunca mais o materialismo, culto ou inculto, e o idealismo, ingénuo ou refletido, se encontraram em conflito sem que, tarde ou cedo, o idealismo, erguendo-se de todas as derrotas, não acabasse por arrastar os homens e os conduzir à alegria e à felicidade em reinos superiores à sordidêz do mundo, mesmo quando essa sordidêz fôsse abundantemente doirada e inteligentemente regrada. Desde que esta alma acorde, confundirá, por fôrça ou por arte, pela irresistibilidade que é a sua essência, aquela outra alma de baixa servidão terrena que lhe repugna. Anunciam os augures políticos que esta guerra traz comsigo a libertação das pequenas nacionalidades. Mas, entrevendo em semelhante empreza mais do que uma conquista de meras liberdades políticas e de independência dos povos, recordando a dissolução do império romano, seguida da fragmentação medieval, e aproximando-a da revolução iminente dos impérios modernos nas suas tendências descentralisadoras, já amplamente e brilhantemente exemplificadas na Inglaterra, não estará muito afastado da realidade quem supozer a política levada neste pendor pelo surdo impulso de fôrças morais e religiosas, pela pressão das exigências da mentalidade característica da nossa era. Á liberdade do pensamento, emancipada de toda a espécie de dogmatismo, exaltada e avigorada pelo estudo, pela experiência e pela reflexão, corresponde a pulverização das crenças e das aspirações, a infinita variedade do modo de ser intelectual, moral, religioso e estético do nosso tempo, demandando com a legitimidade da revisão e contestação de toda a fé a legitimidade e direitos de tolerância de todo o espírito nas suas manifestações especulativas e concretas. Dentro de grandes linhas psicológicas fundamentais, a diversidade é extrema e reclama liberdades correlativas, a assegurar-lhe a expansão. Quando, por exemplo, e o mais vulgar, uns pedem «Deus, Pátria e Rei» e outros exigem «Liberdade, Igualdade e Fraternidade», podemos estar certos de que de cada lado não se apuram algumas centenas de homens que vejam Deus no mesmo altar, que amem na pátria as mesmas feições, que dêem ao rei o mesmo trono, que encerrem a liberdade nos mesmos limites, repartam pela mesma medida a igualdade e sintam pelo mesmo coração a fraternidade. Ora à desagregação do pensamento tem de corresponder, naturalmente, a pulverisação dos poderes políticos que não podem subsistir na antiga integridade e extensão sem a unidade de tendências mentais, constantemente contrariados, minados e traídos por obscuras mas indomáveis rebeldias. Se vêmos um estupendo império, como o da Grã-Bretanha, englobando sob a mesma bandeira, irmãmente querida e amada, as raças mais diversas e as mais diversas aspirações, é porque para êsse milagre político, sem precedente na história, se criou um povo em cujo génio, por uma arte que é maravilha de espontânea perfeição, se conciliam praticamente as maiores e desusadas liberdades com a coincidência em uma unidade, para a qual provavelmente só se encontrará justificação na comunidade de amor à própria liberdade e no propósito íntimo de a manter e defender. Sendo, porêm, excepcional este modo de ser e sendo ao mesmo tempo evidente que não conseguiu êle até hoje reproduzir-se, particularmente no continente da Europa, onde à extrema desagregação do pensamento, de todo carecido de unidade, se junta a extrema opressão dos impérios, de todo avessos a suportarem independências, o conflito tem de seguir seus trâmites para abolir uma unidade forçada que a unidade psicológica não autoriza; e para satisfazer a diversidade pela liberdade há de encontrar as soluções convenientes. Os ingleses não exageram, quando dizem que combatem tanto pela Inglaterra como pela Alemanha. De facto, preparam a vitória de princípios, por cujo triunfo anseiam todos os povos chegados à idade da razão. O que êsses povos vão fazer déssa liberdade, até onde a levam, para que a querem e em que a aplicarão, o que ela vai demolir e o que ela vai construir, não é fácil prevê-lo, como não é fácil prever que destino as estações reservam à planta que hoje nasce bafejada do sol e ámanhã se verga e esmorece açoitada do temporal. Mas dêsde já se torna manifesto que estamos em vésperas de uma profunda reacção, pois que por efeitos de reacção chegámos à convulsão presente. Desde já se adivinha que a negação da cultura alemã, e negada está seja qual fôr a sorte das armas, sendo ela a cultura e a ambição meditada e tenaz de toda a especie de materialidades, implica um largo desprendimento de infinitas materialidades com que agora sobrecarregamos e afligimos a vida. O dr. Inge, prégando há pouco em Londres, na abadia de Westminster, e discorrendo sobre as conseqùências da guerra, definiu o que entre os pensadores começa a distinguir-se nitidamente, dizendo: «Teremos de nos contentar no futuro com uma vida mais chã e, espero, com um mais alto pensar. Se assim fôr, veremos a verdade daquêle velho e belo proverbio espanhol, de que «Deus nunca bate com ambas as mãos». As nossas perdas seriam ganhos.» Mesmo entre nós, alguma coisa se passará de conseqùências talvez larguissimas, e porventura altamente benéficas, apezar da crise dolorosa a que nos sujeitam. É sabido que os rendimentos das alfândegas chegaram a baixar em proporções assustadoras. Significa isso a privação de muita coisa que sempre nos será indispensável e que por qualquer modo teremos de criar ou substituir, e significa tambêm a abstenção de muita outra coisa que sempre nos foi supérflua, só por vício se divulgou e é urgente suprimir. Se esta situação persistir, a que modificações obrigará a economia do pais e respectivamente a economia de cada um? Acontecerá que por urgência das pressões económicas cheguemos a um nacionalismo e a uma simplicidade aos quais nenhum incentivo moral póde levar-nos, e em favor dos quais se esfalfaram em vão a arte mais sã, o mais bem inspirado patriotismo e mais modesto bom senso? Evidentemente, a alma dos povos não se vence e aniquila e transmuda com aquela prontidão que os canhões mostram ceifando os exércitos e arrazando as cidades. Não consente mutações instantâneas. Ámanhã, finda a guerra, os povos que nela combateram e os estranhos que comovidamente foram testemunhas das suas vicissitudes, continuarão no seu trabalho, nas suas paixões, nos seus vícios e nas suas virtudes, como se lhes permanecesse intacto e sem alteração o carácter. Mas novos ástros se ergueram, brilham e lentamente iluminarão e penetrarão o mundo com a sua luz, e nele criarão inumeráveis vidas novas. O materialismo com todas as suas edificações e fortalezas afunda-se no occaso, e o idealismo, renascido das profundezas onde jazia sepultado, mas não morto, surge glorioso a revestir a terra desolada. Ganhos e perdas Os factos da consciência não esperam os feitos das armas para reconhecerem e declararem as suas vitórias e derrotas. Pondo em pouco as conseqùências militares e políticas da guerra, desenhe-se como houver de se desenhar a divisão da terra, reparta-se como houver de se repartir a distribuição da fôrça e dos canhões, muito antes disso e independentemente dos seus destinos e designios já as aspirações e crenças dos homens definiram e anunciaram tendências e propósitos que da guerra nasceram ou na guerra encontraram terreno propício, já marcaram no seu rol vencedores e vencidos, já proclamáram suas determinações inflexiveis. Não são poucos, e sôbre tudo não são pequenos, os vencidos da conflagração tremenda em que o mundo se agita. Dela sai já gravemente ferido, arrastado e vexado, perdida a corôa e desprestigiado, o poder magnifico do socialismo que durante longos anos fez prosélitos, adeptos, martires, herois, em torrentes, por milhões, apaixonou as multidões, dominou, convenceu e pôz ao seu serviço os reis e os sapientes, toda a grandeza e autoridade política e moral, o saber, a virtude e a fôrça. Chamado a dar conta dos seus compromissos de humanidade, a dizer como, por que modos e até onde influia na felicidade dos homens e com a abastança assegurava a paz, a alegria e o amor do proximo, que invocára para base dos seus direitos e legitimidade dos seus triunfos, mostrou-se o companheiro e o aliado submisso de todos os despotismos e de todas as crueldades. Não nos poupou nem um golpe, nem uma lagrima, nem uma injuria; a todo o morticinio, a toda a opressão e a todo o insulto o temos visto associado, sem um lamento, sem um gesto de repulsão, escravo dedicado de um patriotismo todo constituido e só constituido de cobiças e odios, por completo desconhecendo o que seja e para que sirva a fraternidade, a magnanimidade, o respeito da liberdade estranha, todo o Decalogo. Doutrina de autoritarismo e de despotismo económico moralmente acanhada, reduzindo a vida a uma repartição de comodidades e a uma cevadeira de necessidades físicas e apetites meramente sensuais, o socialismo podia importar, e de facto importou, maravilhas de ordem, de previdência, de agasalho e bom trato, grandes contentamentos do estomago e grandes regalos, mas era uma mecanica que só considerava o corpo, deixava intacto isto que chamamos alma e, nada dizendo ao nosso coração, consentia-lhe que alimentasse a ruindade de sentimentos cujas furias a guerra soltou; até mesmo assistiu, mais do que indiferente, complacente, senão contente, à prolongada cultura dessa ruindade, que as obsessões de grandeza política reputavam um auxiliar eficaz de seus desvairados sonhos. Na verdade, o socialismo, sendo reconhecidamente e de antiga data um despotismo, a abdicação voluntária ou forçada da liberdade individual na omnipotência do estado, não tinha razão para desamar quaisquer despotismos seus irmãos; tudo poderia sentir, sincero e coerente nas suas afirmações, menos a palavra liberdade. Mas a liberdade não lhe perdoava, jámais lhe perdoou, cedo começou a apontar-lhe e a exprobar-lhe a infidelidade aquilo sem o que a vida é pura miseria, embora dourada; e agora, vendo-o arregimentado com o despotismo e a opressão militar, passa-o ao bando das traidores e herejes. As sombras dos Proudhon, dos Bakounine, dos Tolstoi, dos Réclus, como a figura profetica de Kropotkine sorriem tristemente à desgraça presente e à ruina, mais do que nunca confiadas em que só a gloria da sua crença poderá resgatar-nos da mortificação. Quantos apregoavam que os governos são essêncialmente um mal, seja qual fôr a fórma em que pretendam ocultar seus maleficios, quantos abominaram a coacção e por a abominarem foram crucificados e sofreram nas enxovias e na perseguição e no desprezo dos homens, quantos só esperaram a felicidade das sociedades e a redenção das suas penas fundando-as no imperio da consciência moral isenta de toda a violência e constrangimento, sentem renovada e avigorada a sua fé e exaltam-se na vitória que lhe facultam as calamidades, espalhadas pelos seus adversarios das alturas dos seus tronos e dos seus tribunais, semeando a ferro e fogo a fome, a morte, o luto e a desolação, com uma impiedade inflexivel, obedientemente e brilhantemente servida pelo esforço irado dos exércitos e pela soberba enfatuada e corrompida das magistraturas. Filho legitimo do liberalismo dos nossos avós, o anarquismo, na sua alta expressão filosófica, que não nas suas aberrações criminosas, vê de súbito a sua bandeira erguida e iluminada de uma nova luz, flutuando sôbre o naufrágio e confusão da inconsistente e ilusória bondade do socialismo. Nem para nós, na estreiteza da nossa descurada mentalidade, é novo o problema. Ha muito lhe ouvíramos o rebate a que responderam as imprecações impacientes daqueles a quem êle surpreendia, pondo-lhes em risco bens e grandezas. Há vinte anos, António de Serpa,--um talento culto, homem de superior e nobre capacidade, a que poucos mas os mais eminentes dos seus contemporâneos fizeram justiça e que o desleixo pátrio se apressou a esquecer,--escrevia um opusculo sobre «O Anarquismo». Foi quase um escândalo. Comentado o propósito, antes da publicação, com o indignado pavor de muitos aos quais se figurava heresia monstruosa, mal se compreendeu e aceitou mesmo depois da publicação, quando se tornou possivel examinar as doutrinas que expunha em seus termos, aliás muito chãos e claros. O chefe de um partido conservador arvorava-se em advogado do mais perigoso pensamento revolucionário! Muita gente o imaginou e lamentou, sem poder explicar êsse estranho desvairamento. O estudioso e observador da evolução política, que outra coisa não foi nesse incidente o antigo ministro do Estado e o mais moderado dos ministros, o mais avesso a radicalismos, verificando o desenvolvimento das doutrinas e referindo-as aos factos e às lições da experiência, determinando posições, relações e conseqùências, desapaixonadamente e lucidamente, com inteiro conhecimento de causa e aturada reflexão, em um espírito de pura justiça, perfeita sinceridade e elevado idealismo, êsse passava ignorado das multidões que apenas o tinham visto e compreendido nas secretarias do Estado, referendando decretos de nomeação de funcionários públicos. Entre o antigo e o novo homem a distância era grande e a incompatibilidade profunda, e os que haviam servido e amado o ministro, não estavam dispostos a seguir ou aplaudir o pensador, a quem por última homenagem reservavam todavia certo respeito, aquilatando-lhe o valor pela posição social que ocupava e não pelos merecimentos que o engrandeciam. Nessa conjuntura, Antonio de Serpa encontrou, porêm, um amigo e contraditor notavel, de prodigiosa fecundidade, saber e vastidão de espírito, grande autoridade moral e intelectual, que foi, é, e está para durar--Oliveira Martins. A êsse tempo, era êste o adepto e propagandista do muito falado e querido socialismo do Estado, grande progresso fabricado nas universidades da Alemanha, fértil em promessas de renovação das sociedades, grande organizador e disciplinador. O retardatário seria Antonio de Serpa com o seu liberalismo dissolvente, todo penetrado de negações. Vieram para a imprensa as discussões dêsses dois ilustres antagonistas, aplicando as suas teorias ao regimen económico, e não foram sem influência nas vicissitudes políticas e na administração pública dessa época e nas que até nossos dias se lhes teem seguido. O socialismo venceu, profundamente penetrou e se mantem na constituição política nacional, embora o mais das vezes se revele tão pobre de ideais como incapaz na aplicação. Quase só temos a agradecer-lhe a boa vontade, perdoando-lhe os agravos. Se hoje, porêm, relermos o opusculo de Antonio de Serpa e considerarmos as suas simpatias pela aspiração essêncial do anarquismo, e a coragem com que, sem receio das interpretações equivocas, veiu em defeza dos seus principios fundamentais, aquilo que algum dia levantou rumor de blasfémia e escândalo não se nos afigura mais do que uma ténue apologia de verdades quase axiomaticas, uma vaga e frouxa inclinação, timida e até nem sempre isenta de injustiça. Outros e inesperados aspéctos se nos deparam. Ao fim destes vinte anos, o anarquismo, que com fortuna vária insistentemente proseguia no seu eterno duelo com o socialismo, reaparece-nos revestido de nova e resplendente armadura. Perante uma horrorosa fatalidade de que o seu inimigo é cumplice, descobre-lhe as deformidades e aponta-as á maldição dos povos. As munições dos exercitos converte-as êle em punhais terrivelmente agudos para quem as fabricou e emprega. O principio da maxima liberdade social e política, e correlativamente a redução ao minimo dos poderes do Estado e das sujeições do govêrno político, isso que é na realidade o princípio anarquista na sua pureza, conseqùência lógica de toda a aspiração liberal que criou as sociedades modernas, avigorou-se na guerra com extraordinárias forças. A Revolução Francesa recrudesce exaltada em novas glórias e a sua bandeira de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que ha perto de cincoenta anos andava esfarrapada, escarnecida e vilipendiada pelos filósofos do absolutismo, pelos comandantes das casernas, pelos prégadores e ditadores dos parlamentos e pelos profetas da lei da luta pela vida, ei-la de repente restituida à sua unidade, beleza e caridade, reanimando em esperança as multidões prostradas pelas agonias, dôres e impotência que foram a obra sinistra dos seus inimigos. O que não disseram da Revolução Francesa o imperialismo restaurado pelo prussianismo triunfante de 1870, pelo realismo literário inflamado pelo baixo materialismo que desnaturou e atraiçoou as teorias evolucionistas, e pelo positivismo, solicito demolidor de altares e de teologias, todo zeloso das coisas práticas do mundo?!... Liberdade, Igualdade e Fraternidade, idealismos e realismos, tudo eram utopias, doenças, fraquezas a que urgia acudir com a proscrição do sentimentalismo, levando de tropel toda a nobreza, e com a glorificação da cobiça e sensualidade, desdenhando de toda a obrigação de generosidade e pureza. Uns nasciam para mandar e outros para obedecer, dizia-se então; e todos para se banharem e deleitarem em um mar de infinita sordidez, cuja navegação o socialismo organizava com inexcedivel engenho e superior segurança para um alto e ponderado comércio de carregações de prosperidades, regalos, comodidades e mercâncias. Nessa construção, era a Sciência que lhe animava e inspirava o impulso, emquanto lhe traçava os planos, libertando de toda a debilidade da Religião que arruinára, segundo ela cria, os edifícios de outras eras tenebrosas, barbara, nociva, perigosíssima superstição com sua fatal insânia de ascetismos, desprendimentos e estéril consagração ao que não é dêste mundo. Hoje, os exércitos que por suas paixões e crenças cobrem de sangue a terra e sacrificam milhões de vidas, clamam alto que combatem pela liberdade, pela independência das pequenas nacionalidades, pela aniquilação do despotismo militar e seus consortes e derivados, pelo reino do cristianismo entre os homens. É a rehabilitação total do espírito que inflamou a Revolução Francesa; é a justificação ardente e cara do idealismo político e religioso amaldiçoado e acusado de sentimentalismos mórbidos e por demais esquecido e atraiçoado; é a ressurreição e louvor de todo êsse romantismo brilhantemente e exuberantemente fecundo, que afinal, através de todos os seus fulgores e errores, significou com uma eloqùência inaudita o descontentamento do império da sordidez na humanidade, a visão de sociedades melhores e de almas mais elevadas do que aquelas muito mesquinhas e imperfeitas que dolorosamente nos dominavam e turbavam--dêsse romantismo que, em obras de génio, foi acto de Fé, Esperança, Caridade e Beleza, por vezes louco mas jámais vil. Por essas crenças que há um século cobriram de vítimas a Europa e que afadigamente, desde a reacção de 1870, renegámos e esquecemos, morrem hoje alguns milhões de soldados. Um incidente histórico que da capacidade militar da Prússia fez a lei do mundo culto, corrompendo o senso moral e político dos povos estranhos e pervertendo aqueles mesmos que lhe deram causa, interrompeu a civilisação iniciada pela Revolução Francesa, fundada nos seus evangelhos e durante oitenta anos conquistada passo a passo, heroicamente, entre mil desastres e infinitas penas. Fecha-se agora o período de quarenta anos de reacção. Á parte condições técnicas e a magnitude de uma organização de fôrças militares que o industrialismo moderno sabiamente aparelhado produziu e ostenta, a situação do principio do século XIX e a do principio do século XX inteiramente coincidem. O impulso íntimo não mudou; apenas se encontra robustecido pela experiência recente e aturada e tambêm pelo desengano da conveniência e insolência do despotismo armado a primor e acautelado com talento e saber, mas nem por isso mais humano, antes muito mais brutal e pedante do que o absolutismo anémico, mais estúpido e senil do que cruel, que pelas côrtes apodrecidas da Europa a Revolução Francesa desapiedadamente combateu e derrubou. Escutemos o que a Inglaterra nos diz. De pronto compreenderemos para onde caminhamos, para onde ela nos quer levar e nos leva, porque nesta cruzada, evidentemente, vai na frente. Se não foi a sua espada mais poderosa, foi de certeza a sua consciência mais penetrante. O ódio alemão não se ilude; apontando apoplético à Inglaterra, aponta ao inimigo. Pela palavra dos seus sacerdotes mais venerados, sem duvidar da vitória nem um só instante, préga a guerra santa. «É uma batalha de ideias e de ideais», diz-nos o dr. Clifford, um velho, que foi um dos mais eloqùêntes adversarios da guerra da África do Sul e é há cincoenta e seis anos pastor protestante de uma igreja de Londres. «Krupp póde fazer armas, mas não póde fazer homens. Estes professores de chacina, prégadores da barbaria como um dogma, estes homens que se apoiam em bases scientíficas e advogam a ruína das catedrais e o terror dos não-combatentes, homens, mulheres e crianças--estes homens trabalharam durante quarenta anos e é o resultado da sua obra que nós combatemos». E o reverendo Orchard, da King's Weigh House Church, moço de talento e justa fama, por sua vez nos diz que «se há qualquer cousa vital na nacionalidade e no império, não há derrota que os (aos ingleses) esmague. A vitória não será decidida pelas massas dos homens ou pelo tamanho dos canhões, mas por uma certa concepção da nacionalidade e do império. Os impérios morrem, não por um perigo externo, mas porque o coração do império não é suficientemente forte para lhes sustentar o corpo». «Podem os homens queixar-se de que a ética cristã é frouxa, mas não podem tirar-lhes do sangue a influência cristã». «Não somos uma nação cristã, mas não podemos negar o nosso amor por Cristo». «Ha certa essência de cristianismo no sangue inglês» que lhe deu domínio sôbre os outros povos, sentimento de justiça e magnanimidade, que o faz sorrir no seu humorismo à contradição das cousas resolvida e conciliada na unção de uma perene bondade. E a filosofia e a história, o meditado conhecimento dos factos, confirmando a intuição do sacerdote, como êste confirmára as afirmações do político que pela bôca do primeiro ministro da Inglaterra assegurará ao mundo que «não se tratava de um conflito meramente material, mas tambêm de um conflito espiritual», não nos induzirão em sentimentos diversos dos que as igrejas e as chancelarias nos insinuam. O pensador fortalecido por aturado estudo e acreditado por trabalhos valiosos que é Benjamim Kidd, resumindo as conclusões dos mestres da sua classe, julga que a Alemanha só poderá ser vencida por «um idealismo mais alto e uma crença e uma determinação que sejam mais fortes do que aquelas que nesta guerra a sustentam». O ideal que anima a Alemanha moderna «representa a mais antiga doutrina política do mundo--a doutrina do estado predatório como encontrou a sua expressão histórica mais subida no império da Roma pagã. Exprime, em resumo, a negação dos princípios característicos com os quais os progressos e liberdade do Ocidente se identificaram desde que o mundo antigo caíu. Mas exprime essa negação protegida com sciência, recursos e organização, como Roma nunca possuiu». «Todavia, a história da civilisação ocidental durante dois mil anos não é senão a história do esmagamento e pulverização desta doutrina, em toda a fórma por que ela procurou encorporar-se no estado aliada ao poder militar». A significação subjacente de todas as fórmas do progresso no Ocidente durante vinte séculos é que êsse progresso ergueu a concepção do direito a uma altura que é universal, «Fez o direito independente e superior a todos os interesses do estado, seja qual fôr a pretensão ou missão em que possam basear-se, seja qual fôr a escala em que possam representar-se, e seja qual fôr a fôrça em que possam apoiar-se». A doutrina oposta, reclamando a superioridade do estado sobre o direito, foi sempre o desafio às lutas estupendas que constituem a história da civilisação ocidental, e sempre caíu sob o impulso de uma civilisação mais alta. Cabem à Inglaterra as maiores responsabilidades na crise presente. A sua história e o seu domínio «fizeram da Grã-Bretanha a mais complexa psicologia política e a mais poderosa fôrça do mundo moderno. A natureza da sua fôrça escapa inteiramente à compreensão dos espíritos presos no absolutismo fechado das castas militares da Alemanha moderna. Foi ela que em contacto com o mundo durante séculos e nas suas humilhações e desastres, como nas vitórias de um império de 450 milhões de individuos da raça humana, aprendeu a grande lição universal--isto é, que há uma só raça, uma só côr e uma só alma na humanidade, posto que para o saber queimasse às vezes a carne. Foi ela que ergueu o sentimento da responsabilidade humana acima de todas as teorias dos interêsses dos estados e dos impérios». Foi ela que, por sua glória e fortuna da humanidade, amou, guardou e enalteceu com uma devoção invencível aquele «intolerável pêso da moralidade de escravos da ética civilisada» que Nietzsche flagelou; e foi ela tambêm que mais do que nenhuma outra nação, e esplendidamente, nos deu um exemplo inegualável dessa democracia que hoje proclama retumbantemente os seus incontestados direitos e há pouco não passava de «uma falência e uma vergonha», no conceito presunçoso e insolente dos administradores e senhores da «caserna besuntada de metafísica que fica para lá do Reno», segundo a sugestiva expressão de Eça de Queiroz, tão pitoresca como profunda e vagamente profética. Ferido na guerra o socialismo, gravemente ferido pelas suspeições que o desprestigiam empanando-lhe o resplendor de mensageiro humanitário, amesquinhado pela insuficiência da aspiração que o alenta e acusado de intimidades manifestas com o despotismo, de que se revelou amigo e instrumento dócil, havendo «quebrado a espinha dorsal», nos termos em que exprime o seu desastre um publicista cujo diagnóstico tem corrido na imprensa--e sendo o socialismo a mais scientífica das concepções de governo e a mais engenhosa arte de governar os homens e os trazer contentes, com êle caem por terra e se desfazem volumosas bibliotecas de estudos e teorias, qual delas a mais subtil, complexa e eficaz para dar a abastança, a felicidade e a posse de todos os bens do corpo e da alma. Se é grande e edificante a humilhação do orgulho militar, frustrado na sua omnipotência pela aversão dos povos, não é menor nem nos ensina menos a humilhação do orgulho scientífico e filosófico que com êle se emparceirára em uma só jactancia e o apoiava e instruia. A Alemanha afrontava a terra inteira com o seu saber, tão arrogante, poderoso e altivo como as armas com que ameaçava levar diante de si e sumir nos arrebatamentos invencíveis da sua cultura as nações e as gentes de todo o globo. Arvorou-se em empório de todo o saber e de todo o pensar. Só dali nos viria essa mercadoria preciosa, e porventura excessivamente a procurámos em suas terras e a pagámos por exagerados preços. De facto, nunca se viu um povo tão bem preparado com aquilo que a razão pode facultar-nos, senhora do mais profundo conhecimento das forças em acção no universo. Nunca ninguem penetrou tão lucidamente os segredos das coisas, nunca ninguem soube tão completamente as suas qualidades, e nunca ninguem as aproveitou em igual extensão e com mais minucioso e sábio metodo. A preparação militar da Alemanha, tão falada e tão gabada e temida, era apenas uma das faces da sua preparação em absoluto. Estava preparada militarmente, como preparada estava socialmente, nas escolas, nas instituições, no comércio, nas oficinas, sôbre tudo nas suas oficinas. Era um prodígio sem precedentes, um inaudito fenómeno de previsão, de ordem, de atenção, compreensão e satisfação de todas as necessidades, das maiores às mais pequeninas, de antecipação de todos os confortos, de extremo desenvolvimento de toda a capacidade mental, de toda a riqueza económica, de toda a fôrça concebivel e possivel dos indivíduos e das comunidades. E nada disto, que era e é um assômbro, impediu que o mundo inteiro, ou pouco menos, se revoltasse contra ela, lhe abalasse o edifício formidável, e para o fazer se sujeitasse ao maior e mais angustioso dos sacrificios. Imaginou a Alemanha que o mundo se revoltava contra a sua grandeza porque, incapaz de a atingir, a invejava e odiava. Mas na realidade apenas se revoltou contra a natureza meramente material da sua grandeza. Foi isso que êle odiou, foi isso que o ofendeu e fez lançar no combate, incitado por uma vaga mas impetuosa intuição da urgência de certa necessidade de humilhação do orgulho da razão, da sciência, da filosofia, e das vaidades, e bastas vezes inanidades, das suas multíplices traduções práticas. Fabricára a Alemanha robustissimos animais com todos os merecimentos de presa, de actividade e de presteza, que podem competir a uma esmerada animalidade. Mas o que esqueceu e o mundo pedia, foi criar homens com todas as qualidades de liberdade e bondade que o coração não dispensa. O resultado será que, levado o conflito à agudeza em que de perto o sentimos, ficámos desconfiados para largos anos, provavelmente para largos séculos, de que aquelas escolas, aqueles laboratórios, aquela sciência, aquela filosofia, aquelas armas, aquela disciplina, e toda aquela ordem material, intelectual e moral, de uma tenue moralidade sem nobreza, que admirámos, copiámos e nos era afiançada como a última e definitiva palavra da civilização, serão bem pouco, os míseros vencidos de uma outra civilização muito mais ingénua, muito menos sábia, muito menos preparada, meditada e armada, mas apaixonada de liberdade e amor, muito mais cristã, numa palavra. E a glória imarcescível desta civilização confundiu totalmente o orgulho daquela outra, inconsistente e fraca, embora erguida em dourados baluartes. Facto singular e notável--há muito a Alemanha se queixava de pobreza de homens públicos e diplomatas; até mesmo não estava segura de abundar em capacidades militares. Isso diziam, sem reservas, entre os seus, os que mais autoridade e experiência tinham para o afirmar, e isso era confirmado pelos estranhos que estavam em circunstancias de conhecerem a situação política do Império; e isso se acentuou com uma evidência concludente nas negociações que precederam a guerra e em todas as que se lhes seguiram, revelando da parte da diplomacia alemã uma incapacidade suma, ao passo que a Inglaterra ostentava nas mesmas diligências uma pleiade de homens públicos a par do seu passado e da sua fama, em tudo à altura das dificuldades assombrosas da conjuntura, e a França e a Russia nada lhe ficavam devendo em demonstrações brilhantes de inteligência e carácter daqueles que conduzem os seus destinos, quer nos campos de batalha, quer de portas a dentro das secretarias do Estado. Parece que toda a sciência alemã, com a exactidão matemática dos seus apurados cálculos e processos, abandonou ou ignorou qualquer factor essencial, e por isso foi incapaz de criar homens nesta inteireza, equilibrio e beleza de faculdades que só o latino nas suas tradições, mesmo negligentemente cuidadas, sabe produzir e produz com uma expontaneidade, com uma naturalidade que são maravilha e a mais solida presunção da sua eternidade. Aqueles que jámais descreram das humanidades contra a sciência, que o mesmo é dizer da vida contra a mecânica, da ordem moral contra a ordem material, da dignidade humana na sua plenitude contra o seu rebaixamento em um simples valor económico, renovaram a fé entre as vicissitudes desta guerra, e é bem de crer que vão privar o germanismo do lugar que usurpara às humanidades, e tem de lhes restituir, na educação das novas gerações. Sciência era ainda, e na derrota da sciência vai envolvida, toda aquela psicologia entrincheirada em fortalezas históricas que havia de justificar a guerra, o militarismo, e a arquitectura social e política que lhes convem. E respectivamente os sonhos de paz eram utopia, romantismo, sentimentalismo, negação do espírito scientífico, filosofia da cobardia, desgraça e atrofia das raças que os deixassem prevalecer e só pela guerra alcançariam manter a energia. A própria guerra se encarregou, porêm, de desvanecer toda a velha lenda da necessidade e benefícios das guerras. No primeiro ímpeto da insânia em que se precipitou, foi como uma pesadissima nuvem que escurecesse e dissipasse todas as esperanças de um mundo para sempre livre de batalhas sanguinárias, tal qual o viamos já próximo, ditando a lei do alto dos tribunais de paz e apregoando o advento da idade de ouro pelos profetas e apóstolos que nos convenciam e fascinavam. A persuasão que ultimamente se divulgara de que a guerra significava, àlêm duma acção crudelissima, um negócio péssimo, a _grande ilusão_; toda a erúdita e rigorosa analise que reduziu a guerra a uma futilidade, quando não era puramente a cobiça sordida e cega dos que mandavam e não tinham medida nem lei em suas ambições; essa aurora de tempos novos pareceu escurecida para não mais brilhar, quando os primeiros fumos dos canhões atoldaram. Desenganassem-se os ingénuos, pensou-se; a guerra era condição imprescindivel e insubstituivel das sociedades humanas e, por melhores que fôssem as razões e o sentimento que a condenavam, mais podiam os instintos que a alimentavam. O presente era a demonstração clara da subsistência dessa doutrina de morte. Mas bastaria que isto se disputasse, ainda mesmo que não fôsse com aquela universalidade e largueza com que se discutia, bastava a insistência na dúvida e a inflexibilidade na rebeldia para assegurar que alguma coisa nova agitava o mundo. Imediatamente a reflexão reanimou e fortaleceu as tendências dominantes antes da guerra. Logo se viu e foi certo--facto primacial e de extremas conseqùências, que a guerra, ainda há cem anos uma actividade natural, e nessa qualidade admitida e aceita unanimamente, tornára-se no pensamento dos nossos dias uma monstruosidade, uma aberração e um crime, tão indignadamente apontados e abominados hoje como outrora exaltadamente louvados e aplaudidos. Nem todo o bem provido arsenal que a moralidade da guerra usa em sua defesa pôde dominar a rebelião dos que a detestam e esperam baní-la. Não esqueceu todas as alegações a seu favor que colhera no correr dos séculos; todas aduziu e nenhuma pôde prevalecer. Corrigia o egoismo, avigorava a disciplina, evitava a debilidade, unia os povos, inflamava o sentimento da honra, engrandecia no heroismo, fortalecia para a adversidade, para a tristeza e para a dôr, desenvolvia a obediência ao dever, semeava a coragem, a dedicação e a generosidade? Nem assim conseguia restaurar o império perdido! Poderes mais altos lentamente se haviam constituido, e ao mais pequeno sôpro a piramide, que parecia invulnerável a toda a injúria dos tempos, como os tumulos dos faraoos, esboroava-se desfeita. Perante a prova da vida, a prova do fogo e do sangue, a prova da morte, tornou-se insuficiênte e insignificante para julgar os homens. A escala dos valores toda se havia alterado; quanto era primacial para a grandeza e dignidade e se buscava e costumava encontrar na guerra, tudo se viu e conheceu em muito maior e mais nobre amplitude nas inevitáveis e constantes provações da vida. Se o desprendimento, a coragem, a honra, o estoicismo, a tenacidade, o esfôrço, a consagração ao dever, à amizade, à pátria e ao lar eram virtudes sem as quais os homens se despenhavam na abjecção, não careciamos, para as possuir, de as cultivar no ódio, na cobiça, na brutalidade, na impiedade, na ruina e nas atrocidades sanguinárias; o trabalho, a desgraça, a fatalidade das coisas, a cegueira do destino e do mundo cósmico, o sentimento da responsabilidade religiosa bastavam para nos experimentar e educar. A adversidade de todos os dias, que não cessa de nos acompanhar, era o suficiente para nos ensinar e pôr em prova toda a robustez do corpo e toda a nobreza da alma, se de uma e de outra eramos capazes. O _Cavador do Millet_, no seu campo safaro, só com a sua enxada e o peito descoberto, amesquinhára e derrubára dos seus pedestais os Hercules e herois de todos os tempos, e profeticamente apregoára que era chegado o tempo de converter as espadas em charruas. Após as hesitações do primeiro momento, a guerra, sem embargo da largueza e ferocidade com que vai devastando a terra, sentiu-se vencida e aquela mesma futilidade, aquela mesma maldição, desgraça e estéril crueldade que anteriormente a deshonravam e lhe lavravam sentença de proscrição no conceito dos homens empenhados em nos libertarem dos seus trágicos horrores. Fossem quais fossem os canhões que tivessem de orgulhar-se de soltar o último grito de morte, vencida estava e está aquela espécie de civilização que nos conduziu a esta catástrofe infernal e a preparou e pretende justificá-la. Póde essa civilização restabelecer-se da desordem em que agonisa e, cobrando ânimo, restaurar cidades, oficinas e governos, com todos os seus enganos, traições e angústias, com todas as suas fadigas, prazeres, ruins ambições e opressões; póde, claudicante e ignorando a própria miséria, continuar incerta e cega na jornada dos seus muitos e lúgubres progressos até de novo naufragar na imensidade dos seus inumeráveis desastres. Mas acordou um inimigo que não lhe perdoará; despertou a consciência das suas terríveis enfermidades, e com ela descerrou a visão de reinos de liberdade, de amor e de simplicidade que fascinam. Após a guerra, o mundo será outro, senão de facto, porque os factos são lentos em render-se, ao menos pelo sentir que é tenaz e seguro nas conquistas. Porque, na realidade, esta guerra não foi apenas a conflagração dos poderes da terra, por tremenda que essa conflagração nos pareça; não foi unicamente um incidente histórico da expansão das raças, ainda que muitas envolvesse e apaixonasse. Foi muito mais do que isso, e acima de tudo isso, um acto de contrição dos erros do nosso desvairado coração, por muito distante e obscuro que pareça o seu domínio sôbre o tumulto dos exércitos; mais do que desengano e desilusão de uma traiçoeira paz e ventura, foi o castigo da confiança em fôrças mentirosas, foi um profundo _peccavi_ cuja expiação sofremos no mais angustioso dos transes e cuja absolvição temos de procurar em um mundo fundado em uma outra alma muito diferente daquela, por demais corrompida, a que loucamente nos haviamos entregado. Outras aspirações, outras crenças e todo o seu modo de ser externo terão de nos inspirar para nossa fortuna e alegria. Muita coisa que criamos morta ha de resuscitar; e muita coisa que supunhamos eterna ha de desvanecer-se para sempre. Revisão de valores O facto mais notável da guerra nos mezes, já longos, por que se tem dilatado, não é de certo nem a novidade da tática e da estrategia, nem as subtilezas e primores dos engenhos de matar, que eficazmente aproveita e emprega com éxito brilhante, nem o calibre dos canhões, ou a rapidez dos movimentos, ou a audácia e artes dos que voam nos ares e se perdem nas nuvens tão facilmente como navegam por baixo das ondas e se ocultam nas profundezas do mar. Tudo isso é muito curioso, sem embargo, para as imaginações infantis, mas difere do que antigamente se fazia apenas naquelas minguadas proporções em que os brinquedos das lojas de Paris diferem dos que alegravam as mocinhas de Corinto antes de Cristo vir ao mundo. As jornadas de Joffre em automóvel não serão cousa muito diversa no carácter e conseqùências das que na mesma Galia, igualmente insubmissa e ardente, algum dia foram feitas pelas legiões de Cesar com seus estupendos pulmões aquecidos a trigo e centeio, e em certo modo sobrepujando aos pulmões de aço nutridos de essências explosivas que hoje repetem e acrescentam as maravilhas de outrora. Mais molas, rodas e engrenagens fomos nós capazes de ajustar e pôr em movimento, com espanto das multidões ingénuas e alegria e proveito, não exíguo, dos fundidores e capitalistas e fabricantes, possuidores de privilégios registados e possuídos por uma febre e uma impudência de especular e ganhar tão despejadas e poderosas que não carecem de registo, nem de garantias especiais do estado, para ser ignominiosa e funestamente soberanas. Mas no final, apezar de toda a complexidade em que nos embrenhámos, não ostentamos ambições e talentos superiores aos muitos e famosos que fizeram a guerra quási exclusivamente fiados na fôrça do seu braço; e nem tão pouco consagramos as proezas e chacina a fins mais nobres do que aqueles de estreme e insaciável cobiça que exaltaram os generais de outras eras. Como guerreiro, o mundo é o que sempre foi desde que se conhece história, um assassino cruel e sordido. Será mesmo um pouco mais vil. Se neste capitulo da vida social houve alteração de valores, foi toda em proveito de aptidões degradantes. Com uma guerra feita a poder de submarinos, trincheiras e espiões, a astúcia, a dissimulação e a habilidade de ferir sem correr risco de ser ferido tomaram em larga extensão o logar que era ocupado pela coragem, pela firmeza de ânimo, pela decisão, pela energia, pela grandeza e lealdade da luta a peito descoberto. O carácter de negócio, conta, e cálculo e previsão, aliás de supremo alcance, apagou muita beleza da imprudência, da ousadia e do desprendimento. «As batalhas não são já o heroismo espetaculoso do passado», disse um general celebre pelos seus escritos, Homero Lea. «Os exércitos de hoje e os de ámanhã são uma sombria máquina gigantesca destituida de heroismo melodramático... uma máquina que leva anos a formar em suas partes separadas, que leva anos a uni-las em seu conjunto, e que leva anos para funcionar doce e irresistivelmente». O mais seguro dos combates modernos é obra de trevas, um requinte de traições e de surprezas, uma mecânica anónima, acautelada e perversa, que raro consente um gesto de generosa magnanimidade, raro conduz a revelar quem ofereça com uma clara abnegação a própria vida, quem se inflame procurando dar a morte ao inimigo da sua pátria e da sua crença. Entre a guerra moderna, intima e exteriormente mascarada de couraças, e a guerra dos tempos heroicos, fundada na fortaleza do ímpeto, ha a distancia que vai de um arrebatamento a uma cilada, de um problema a uma oração, e de um negócio a um sacrifício. Sempre a ganância, a soberba, a perfidia, o ódio e a baixeza andaram na guerra involtos e confundidos com a nobreza e a isenção; é certo. Mas a influência relativa do valor de cada um dêsses diversos elementos modificou-se em nossos dias em prejuízo da glória das batalhas. O vulgar e o ínfimo prevalecem. Até nisto teria havido a insinuação de um certo materialismo que invariavelmente prefere a torpeza lucrativa às contingências de uma franca e determinada honestidade. Isso, porêm, são cambiantes superficiais que não atingem a essência da guerra, pois esta nos seus aspectos fundamentais, em galeras ou em couraçados, com catapultas ou com canhões de 42, continua a ser a mesma multidão de dedicações e de abjecções, a mesma jornada da honra escoltada de infâmias, em regra mais rendosa para a ignomínia do que gloriosa para a dignidade. Facto de superior significação que esta guerra tenha a considerar e a guardar como ensinamento, senão como profecia divina, um só teremos a apontar, e êsse de incalculável magnitude--a amizade em que no dia de Natal se fundiram os ódios dos adversarios que momentos antes friamente se trucidavam e que, sem escritos do protocolo nem ordens dos generais, por espontaneidade do coração, decretaram um armistício, tão rápido no tempo como douradouro na inspiração, para soltarem palavras de paz e afeição, que lhes transbordavam do peito, e para converterem em olhares de intimidade e ternura, de que estavam sequiosos, a hostilidade sanguinaria em que um tresloucado fetichismo os trazia empenhados. Os soldados voltaram às fileiras, o fogo recomeçou, o sangue jorrou, e de novo se cobriu de cadaveres a terra. Mas alguma cousa indestructível se edificára e permanecia de pé, inviolável; uma luz se acendêra, que não podia apagar-se, de paz, de comunhão e de carinho; uma saudade se ateiára precipitando as nações e os exércitos em caminhos novos, para outros combates. Não foi, sem dúvida, o internacionalismo cegamente nivelador que ali venceu e aniquilou o nacionalismo nas suas estreitezas e prejuízos, que lhe encobrem a sua legitimidade, lógica, elevação e grandeza, e por vezes as pervertem, transmudando em aversão o amor do próximo e a amizade do vizinho. Não foi o desfazer das nações, das fronteiras e dos lares, a absorpção e a utopia em uma patria indistincta da humanidade. Foi todavia a graduação do internacionalismo na escala dos valores em uma altura superior àquela que anteriormente lhe havia sido designada; foi a consagração de uma abençoada exaltação que cresceu e pôde mais do que a insânia sanguinária de aniquilação mútua, foi um pregão eloqùênte lançado aos quatro ventos da terra, e sobretudo aos senhores da terra, a repetir-lhes que os homens não querem a guerra e a aborrecem, e unicamente pela avidez dos que os governam, escravisam, fascinam e iludem são arrastados às batalhas que o coração amaldiçôa. Foi a confissão tácita, mas iniludível e de uma eficácia incalculável, das determinações de uma consciência que sente dissipar-se a divisão das raças e das nações--não porque a suprime, mas exactamente porque, reconhecendo a diversidade, liberdade e beleza das feições das raças, a ama no vizinho como em nós mesmos, unindo-nos na comunidade de interesses e afeições por aquilo que é o nosso comum amor, em vez de nos massacrar na concorrência das ambições, no desrespeito da individualidade étnica específica, na intolerancia, em tudo quanto póde distinguir-nos e de facto nos distingue, sem que por isso tenha de nos separar e tornar inimigos. Os menos desconfiados das aparências e incitamentos da primeira impressão, vendo soltas as furias da guerra, imediatamente disseminando calamidades e atrocidades sem numero e sem nome, desde o morticínio das mulheres e das crianças até à ruina das catedrais--que jámais poderão ressurgir na inteireza do seu esplendor e poesia, jámais poderão rehaver os bafejos dos alentos místicos que em extasis divinos as sonharam e ergueram e pelo sangue de mártires e pelo génio dos obreiros lhes haviam dado a aureola de uma arte e tradições irreparáveis, das que vivem uma só vez, filhas de uma só alma, e não renascem, se as ultrajou a malvadez dos homens atónitos na turbação de um ímpeto sinistro!--os menos desconfiados dos incitamentos da primeira impressão de pronto descreram dos sinais de paz que há pouco viam com alvoroço no horisonte. Logo se abandonaram ao desalento e tiveram como não subsistentes a solidez e progressos daquele internacionalismo que era a vitória da consciência dos interesses comuns dos povos prevalecendo sobre os conflitos das suas diversas tendências, necessidades e divergências, e conduzindo a uma lenta substituição da hostilidade pela cooperação que, paulatinamente mas incessantemente, se infiltrára no espírito das raças e se traduzia em ligações cada vez mais estreitas, em um comércio material e moral cada vez mais assíduo e penetrante, e na dissolução paralela de suas reservas, dissenções, temores e inimizades. Devia esclarecer-lhes muitas hesitações o que no dia de Natal se passou entre exércitos inimigos em campanha, de súbito tornados irmãos por mandados desconhecidos, mais altos do que a voz dos generais rutilantes de galões; mas, se a grandeza milagrosa dêsses comandos invisíveis não lhes assegura que alguma causa de novo se fundou na terra e que não foi apenas um sonho de visionarios a convicção dos que antes da guerra encontravam na expansão do internacionalismo os fundamentos e a esperança do renascimento político e social das comunidades, meditem paralelamente o que na escala dos valores sofreram o patriotismo e a diplomacia, e isso lhes dirá por outra forma e por outras palavras o que a trégua e os sorrisos do dia de Natal não lhes tiverem significado. A seu modo e precisamente, pela análise da história, pelo exame dos factos políticos e pela verificação das ideias e opinião dominantes, isso lhes dirá o que porventura lhes haja escapado na inspiração misteriosa e vaga dos transportes do coração, nêsse desdenhado e até execrado sentimentalismo que, no conceito dos seus inimigos sendo nada, uma futilidade doentia, quando não é a desgraça, a dissolução da energia, teve todavia a fôrça de desarmar exércitos e transpor trincheiras que os corajosos e prudentes, indemnes de debilidades afectivas, haviam juntado e edificado para uma obra de extermínio. O patriotismo reconhece hoje penitentemente os seus desvarios e crimes, e é novo e singular que se atribuam crimes a quem andava protegido por um resplendor de pureza. Eivado de infinitos temores, ódios e egoismos, corrompeu-se, ou melhor, não tem sabido purgar-se de «faltas grandes e crueis, como aconteceu á religião do cristianismo, embora as faltas do patriotismo não sejam usadas pelos agnosticos contra êle, do mesmo modo por que êles procedem para as faltas da religião, o que talvez possa derivar de que os agnosticos estão compreendidos nas faltas do patriotismo e são alheios às faltas da religião». Compreenderam-se em uma só divindade e apostolado as virtudes e as degenerações e deformidades do patriotismo; porque «o patriotismo pode tornar-se não moral, ou definitivamente imoral e ateu. Os estados, como as igrejas, podem começar por uma cobiça de fôrça, por impulsos de infalibilidade, e daí passarem, através de uma perversão de lealdade, à perda conseqùênte da honra e ao esfacelamento da etica». «Um cristão não pode pedir a sua moral ao estado ou tomar os diplomatas como seus directores espirituais; o unico patriotismo que êle pode respeitar é o que obedece ao Deus da verdade e da rectidão. E este patriotismo, porque é moral, é capaz de ser internacional. Um patriotismo que não pode ser internacional que não pode encontrar logar para uma mais larga lealdade à humanidade ou uma mais profunda lealdade à igreja, acaba sempre por ser criminoso». «No fundo de todas as doenças do patriotismo há sempre o espírito do ódio». «O verdadeiro patriota é o que crê, não em um só patriotismo, mas em todos, que respeita a nacionalidade dos outros e saúda a lealdade onde quer que a encontre. Não fomos suficientemente patriotas no passado. Realmente, não acreditamos no patriotismo». É insensato, mesquinho e despiedoso o patriotismo que antes de bem combater não soube bem viver, que só na guerra sente as obrigações e todas as esquece e desconhece na paz. «Nos anos angustiosos de sombria luta de classes que nós chamamos os anos caquéticos da paz, vivemos vidas baixas, egoistas, acanhadas e crueis. De ano para ano as cidades alargam horrivelmente as suas ruas e tocas nesta linda Inglaterra», (como de resto em todo o mundo), «que é nossa, pela qual somos capazes de morrer, mas pela qual não estamos prontos a viver; de ano para ano são oprimidos os pobres, rebaixados os humildes e quebrantados os fracos, e ergue-se aos céus o clamor de milhões que se submergem emquanto nós opulentamente nos divertimos. E imaginamos ser patriotas! Até no tributo da vida humana a chacina da guerra é pequena, comparada com os acidentes constantes que resultam das doenças que se podiam evitar, da mortandade de crianças a que se podia atalhar, de industrias perigosas desnecessarias, da ignorância, da pobreza, da embriaguez e vicio».[4] Companheira e a melhor serva dêsse patriotismo e nacionalismo de antagonismos sangrentos, rapacidade e conquista--miséria e orgulho dos govêrnos destituídos de senso moral e religioso, a diplomacia, principal responsável da desolação e luto que cobrem a Europa, sofre hoje na guerra uma completa derrota. Vexada pela enormidade do desastre, para sempre convencida de uma monstruosa traição a Deus e aos homens, à paz e à riqueza da terra, condenada e confundida pelo cataclismo que na sua corrupção e debilidade fundamentais provocou, aplaudiu e consumou, perdeu o prestígio dos seus conciliábulos e segredos, e são mais os incrédulos que a proscrevem do que os fieis que a amparam. Há muito suspeita, por isso mesmo que, dissimulada e tenebrosa nas maquinações, isso induzia a desconfiar da sua justiça e boa fé, embora fôsse o meio de lhe ocultar os propósitos e habilidades, e não raro as cobiças, a sordidez, as vaidades e ignobeis fins de que era instrumento mais ou menos consciente e nunca escrupuloso--agora, ao dar conta pública das suas façanhas, estas confirmaram e agravaram todas as suspeitas anteriores. Singular ironia do destino e não sem uma particular significação, um dos homens que muito antes da guerra se identificára mais inteiramente com o movimento que, à falta de melhor expressão, poderemos chamar anti-diplomático, era um hereje da sua igreja, um deputado do parlamento inglês, Arthur Ponsonby, aristocrata criado na atmosfera mais puramente aristocrática que póde conceber-se, nascido em um palacio rial, filho do secretário particular da rainha, descendente de fidalgos com uma elevada posição na côrte e no seu país, pagem de honra da rainha durante cinco anos e em seguida, durante quási dez anos, dedicado ao serviço diplomático no estrangeiro e no ministerio dos negócios estrangeiros da Grã-Bretanha. Mais perfeito conhecimento de causa não podia exigir-se para discutir a situação, valor e tramites da diplomacia, seus beneficios e seus males e agravos. Ora êste homem, que se distinguira já por duas obras de valor, _O Camelo e o Fundo da Agulha_, severo estudo da degradação que a posse da riqueza importa, e a _Decadência da Aristocracia_, onde pôs a claro a fraqueza da própria classe a que pertencia, êsse publicista de sinceridade e talento provados escrevera em 1912 um panfleto, a que intitulou _Democracia e Fiscalização dos Negócios Estrangeiros_. Aí procurava acautelar-nos contra os perigos a que a cerrada e voluntária obscuridade da diplomacia trazia sujeitos os destinos, aspirações e esforços das democracias. «Não creio», escrevia então, «que na época presente haja questão mais importante do que a consideração do problema que resolverá como é que a opinião pacífica, moderadora e progressiva da democracia póde penetrar tanto nos negócios internacionais como nos negócios nacionais, e como é que um estado democrático póde descobrir os meios próprios para se exprimir no governo da nação». Até que ponto fôram proféticos os seus pressentimentos e temores, qual a importancia do problema que êle punha acima de todos os outros problemas políticos, demonstrou-o a guerra. E, interrogado há pouco por um redactor de _The Christian Commonwealth_, pôde renovar o seu pensamento com a autoridade e desenvolvimento próprios de quem o viu justificado por factos de uma trágica evidência. Não supõe «que tivesse havido um cataclismo moral na vida do mundo. O desastre foi devido principalmente a erros políticos. Mesmo depois que a guerra começou, temos tido muitas provas de que realmente não houve quebra na boa vontade do povo deste país ou de qualquer outro. As narrações pateticas, feitas pelos homens em campanha, das relações afetuosas entre êles e o «inimigo» no dia de Natal mostram claramente que a guerra não é entre os povos; sentem a necessidade de ser amigos e facilmente seriam amigos, se os que os governam não estivessem em guerra. O sentimento do povo é perfeitamente são; a guerra não foi causada por ódio ou cólera que o povo de um pais sentisse contra o povo de outro pais. Foi causada pela inferioridade do que se chama a moralidade internacional e que é realmente a moralidade intergovernamental. Baseia-se neste facto a sua oposição à guerra. A sua crítica é principalmente política. Contesta que haja uma quebra moral da parte do povo... carecemos de nos libertar do segredo diplomático e garantir a fiscalisação democrática nos negócios estrangeiros, o que só por intermédio do parlamento póde fazer-se. «Diplomacia aberta» é em certo modo uma frase que não convém. Do que o país carece é de conhecer inteiramente os seus compromissos e obrigações com os países estrangeiros e ter informação definida das linhas gerais da política que se segue relativamente às relações com o estrangeiro. Não precisa de interferir na responsabilidade do executivo... Há na diplomacia uma tradição de segrêdo, um ar de guardar segrêdos misteriosos do estado, que nos veio de idade-média e que tem por efeito deixar as cousas inteiramente nas mãos de homens públicos ciumentos de toda a intervenção estranha. O que mais lastima, todavia, é a política do silêncio oficial sobre materias que se tornam de uma importância vital. Um completo segrêdo é em nossos dias praticamente impossível. O povo sustenta-se de palestras ociosas, rumores e falsas referências dos jornais. Não está sem informações mas está mal informado.» A culpa não é dos ministros, é dos próprios parlamentos que se movem em um círculo vicioso: porque os seus membros não são informados dos negócios externos, poucos se interessam por êles e os estudam, cáem cada vez mais nas mãos dos grupos que os regulam. «Mas a guerra abalou a confiança nestes grupos, e a ocasião é oportuna para mudanças que os acontecimentos mostraram de tal modo imperativas.» As questões de política estrangeira estão destinadas a prender a atenção dos povos nos anos mais próximos, «e toda a consideração de senso-comum e de prudência, para nada dizer da democracia, prescreve uma alteração do sistema que caiu.» Não é que a direcção dos negócios estrangeiros tenha de ser tirada aos respectivos ministros ou que deixe de haver negociações que necessitem de reserva emquanto proseguem. «Mas carecemos de mais bastas oportunidades de discussão, de submetter ao parlamento todos os tratados, compromissos e obrigações, de democratisar o serviço diplomático.» Porque a exiguidade da retribuição dêsses serviços tornaram-nos praticamente o apanágio de reduzidissimas classes abastadas, e «homens de talento, criados na fé democrática, que compreendem e podem interpretar o sentimento popular, são excluidos justamente por não possuirem aquelas qualificações adventícias. Precisamos de alargar a área da selecção.» Evidentemente, a guerra não importou a falência absoluta da diplomacia. Entre as nações terá de haver as inteligências e ajustes que são indispensáveis, essenciais, em toda a ordem da vida social da humanidade, e essas relações não podem deixar de ter seus interpretes próprios e instruidos, e seus planos e modos de proceder. Não está inutilisada a engrenagem porque funcionou mal, pessimamente, com grande perda de vidas e bens e com infinita cópia de atribulações e de dôres. Mas está humilhada, desacreditada, a sua reservada altivez, e por sua insensatez, egoismo, estreiteza de entendimento e estreiteza ainda maior do coração terá de dar o lugar a quem a substitúa com menos soberba, mais modéstia, e sobretudo mais conhecimento e respeito das aspirações dos povos que a sua arte está destinada a servir e que ela cegamente sacrificou às ambições pervertidas de reduzidas aristocracias e à voracidade insondável das oligarquias mercantes. Porque a democracia é um facto. Já nem há fôrça nem astúcia interessada que lhe estorvem a expansão. A diplomacia que vivia encerrada em seus palácios, fóra de toda a promiscuidade e contacto com as plebes que arregimentava apenas para seu uso e capricho, terá de descer a este campo comum onde cada um vive na franqueza sem refolhos das suas aspirações e das tendências dos homens e dos povos seus irmãos. De soberana passa a cativa, ao cativeiro das obrigações políticas e morais que são a condição da dignidade e da utilidade, da arte de ser e viver nobremente, em paz e dando a paz. Um artigo do _Daily Chronicle_, procurando as razões por que a Inglaterra e os Estados Unidos da América teem vivido em paz há cem anos, emquanto a Europa era devastada por guerras sobre guerras, julgava explicação insuficiente do notabilíssimo facto os laços de parentesco que unem os povos dessas duas nações. Embora sem dúvida concorram para essa extraordinaria fortuna, é certo que a identidade da raça dos Estados Unidos e da Inglaterra está profundamente limitada e prejudicada pela insinuação de sangue estranho, e não póde dar razão bastante de tão sólida e prolongada amizade. Causa mais eficaz poderá encontrar-se «nestas ideias de liberdade pessoal, direitos civis, obediência à lei e confiança nos métodos judiciários, que são a herança comum do passado do povo americano e do povo britânico. Ambos êsses países realisaram os processos de pacificação dentro das suas fronteiras, e estão por conseguinte imediatamente mais prontos e mais habilitados a experimentárem os mesmos processos em relação aos negócios externos. Ambos êsses países, posto que viris e marciaes, estão livres do militarismo que escurece a vida civil em muitos países europeus. Estes foram, indubitavelmente, factores que contribuiram para a paz de cem anos. «Há entretanto para êste grande resultado uma outra causa muito mais importante e decisiva do que aquelas que fôram apontadas. É que de facto, a Grã-Bretanha e os Estados-Unidos, ambos são na realidade governados pela opinião pública.» E essa mesma opinião pública, hoje mais do que nunca pacífica, conquistando progressivamente o governo das nações, reclama o seu direito de assistência na diplomacia e promete imprimir-lhe o caracter que brilhantemente revelou onde tem podido dominar. Na verdade, por muito poderosas forças que a diplomacia e o internacionalismo nos pareçam, afinal são instrumentos doceis de fôrças superiores das quais dependem, como todos os demais elementos da constituição social das nações e as suas afirmações. O internacionalismo dissemina-se e avigora-se, e a diplomacia muda de modos, gestos e processos, aparentemente; no fundo não são senhores dos seus destinos, jámais o fôram, e é apenas o espírito cristão que os autorisa ou condena e lhes prescreve novas obrigações. A política em todos os seus aspectos muitas vezes se convence de que póde ignorá-lo, fugir-lhe e desobedecer-lhe, mas não há crise nem convulsão social que o não desperte e não lhe revele imediatamente a eternidade da acção, seu invencível poder e a sua indomável expansão. E esta guerra mais evidentemente do que nenhuma outra o demonstrou. «Longe de representar a bancarrota do cristianismo, representa realmente grande adeantamento na sua conquista do mundo; porque foi a primeira guerra de que muita gente disse que ela marcava o desfalecimento da nossa religião. Por outras palavras, só agora a Europa compreendeu que, se as nações são cristãs, não póde haver guerra entre elas. Isto bem o souberam Atanasio e Tertuliano e a igreja primitiva; mas desde o tempo de Constantino até agora esqueceu-se. Quando o mundo tomou sob a sua protecção a igreja e, largamente, sob o seu governo, no acontecimento conhecido como a conversão de Constantino, muitos dos princípios do Evangelho se obscureceram. Durante séculos, a igreja estava pronta a abençoar exércitos e armadas. Shakespeare julgou apropriado fazer proeminentes os bispos entre aqueles que aconselharam Henrique V a declarar guerra à França. Mas em nossos dias diz-se que um papa, instado para abençoar as armas, respondera:--«Dou a minha benção à paz.» E um arcebispo--_alterius orbis papa_--solenemente declarava toda a guerra «obra do demónio.» Crentes e descrentes, todos afinal achamos igualmente que toda a guerra é contraria ao espírito e animo de Cristo. É um lucro efectivo. Não foi, portanto, o cristianismo que faliu, porque o cristianismo nunca foi aplicado às relações internacionais. O que faliu foi uma civilisação que não era cristã»[5]. Romain-Rolland, nos artigos que publicou no _Journal de Genève_ e correram mundo vertidos em diferentes linguas, anunciados como um pregão profético, disse que «as duas fôrças morais cuja fraqueza esta guerra mostrou mais claramente, fôram o cristianismo e o socialismo. Estes apóstolos rivais do internacionalismo religioso e secular mudaram-se de repente nos mais ardentes nacionalistas». Hervé, os socialistas alemães, e Frank, morto em combate, por amor do militarismo, ele que era o campeão da união franco-alemã, todos sem excepção se pozeram à disposição dos seus governos e lhes coadjuvaram as mentiras e os odios «tendo a coragem de morrer pela fé alheia, os que não tiveram animo de morrer pela sua própria fé.» «Os representantes do Principe de Paz, sacerdotes, pastores e bispos, foram para as batalhas aos milhares, a levar-lhes, mosquete em punho, os divinos mandamentos:--Não matarás e amarás o próximo.» Em cada vitoria, ou seja de austriacos, alemães ou de russos, o vencedor louva a Deus pelo favor, «Cada um tem o seu Deus e cada Deus, velho ou novo, tem os seus levitas para o defenderem e destruirem o Deus dos outros.» No exército francês andam vinte mil sacerdotes, os jesuitas põem-se à disposição do govêrno alemão, os cardeais lançam proclamações de guerra, e o os jornais contam, sem qualquer expressão de pasmo, a scena paradoxal na estação do caminho de ferro de Pisa em que os socialistas italianos saudaram os moços ordinandos que iam para os seus regimentos, cantando todos juntos a marselheza.» Pio X, a quem o rompimento de guerra apressou a morte, segundo se crê, que «não poupou os seus anatemas aos sacerdotes inofensivos que acreditaram em a nobre quiméra do modernismo, que fez êle contra aqueles príncipes e criminosos governantes cuja ambição desmedida votou o mundo à miséria e à morte?» Tudo isso seriam, em seu juízo, sináis de fraqueza do cristianismo, porventura a demonstração da sua falência, pela incapacidade manifesta de resolver em seus termos e aspirações o conflito tremendo a que se associou, atiçando-o em vez de o apagar. Eu creio, porêm, que no elevado talento e superior inspiração de Romain-Rolland houve talvez uma injusta identificação entre o cristianismo e as suas igrejas, compreendendo na fraqueza e deficiência da organização das igrejas e nos seus muitos êrros a decadência do império de um princípio cuja expansão e penetração teem sido constantes desde a hora da sua revelação, cujo poder mais do que nunca nos domina e fascina, e cuja lei cada vez mais lucidamente se mostra a solução unica e a unica redenção dos males e angústias que afligem a humanidade. Havendo-se mostrado inferiores à missão que as criára e fôra sua razão de ser, seu alicerce, e glória dos seus templos e mártires, as egrejas cristãs veem-se sujeitas em nossos tempos a gravíssimas provações. Por todo o mundo associadas com o mando, ainda mesmo com o mais despótico e deshumano; tolerando de boa mente o capitalismo e o militarismo, abençoando-os bastas vezes e trabalhando para lhes acomodar o espírito dos fiéis, de ordinário prontas em promover o culto da riqueza e do podêr; quási invariavelmente afastadas, senão inimigas, do desenvolvimento da democracia que, sendo a tradução política dos seus princípios, elas insistiram em desconhecer, aceitando-a em último extremo e deplorando-a com mágoa, como indisciplina, subversão, opressão e derrota, negando-lhe o parentesco, suscitando-lhe dúvidas, temores e embaraços; mais desvanecidas nos favores dos grandes, e partilhando-lhes do luxo, do que afeiçoadas às fadigas e penas dos humildes, e amparando-lhes a cruz; mal preparadas para a contingência da emancipação das graças dos poderes políticos que as propensões do pensamento moderno impozeram, privando-as dos benefícios de uma antiga absorpção da autoridade civil, subsistente durante longos séculos e por diversos modos efectiva, expressa ou tacitamente, nas leis e nos costumes, no forum e no templo; mais combatentes, coercitivas, do que apostólicas, mais amigas de mandar, e de facto mandando, entre erários e espadas, do que confiadas em cativar pela pobreza, pela isenção de toda a violência, pela verdade e pelo amor; de uma scéptica complacência com o fariseismo e hipocrisia que se lhes roja pelos altares, inteiramente descuidadas em corrigir as superstições dos seus rebanhos; afeiçoadas a uma caridade realmente abundante de deligências, desinteresses e esmolas, mas intimamente e logicamente inseparável de todas as aristocracias e hierarquias, muitíssimo avara de concessões de direitos e de quanto possa facultar uma nova ordem que venha a dispensar-lhe a intervenção; não tendo prevenido a pobreza, em logar de a deixar medrar para depois lhe dar remédio à mercê de incertas generosidades tão pródigas em paliativos como timidas em prevenções; havendo deixado que os ritos predominem sobre o espírito e que do espírito se desprenda o simbolismo cuja suprema beleza e alta necessidade se esvai e arrefece, se de expressão da alma os convertemos em feitiços; mais zelozas em apurar regras e manter uma disciplina estreita e mecanica do que exaltadas em respeitar, defender e propagar a pureza dos princípios; desatentas ao inimigo que lhes invadia os domínios, não percebendo ou tomando em pouco o que o desenvolvimento da imprensa diária lhes importava, pois, trazendo-nos a casa todos os dias o pão espiritual que cada um escolhe ao seu paladar, assim afasta do templo onde outrora o procurávamos, nos dias de descanso das fadigas profissionais:--as igrejas, no geral, decairam por inércia e atrofiaram-se em uma dureza estéril, quando, por desgraça ainda maior, não se transviaram totalmente cedendo à cegueira de aspirações traiçoeiras, esquecidas da fé e da esperança divinas e da adoração dos homens, que para as servirem as tinham edificado e cimentado com o seu sangue. Devotos não lhes faltavam; muitos tiveram e teem. Faltaram-lhes crentes, o que é diferente; e, chegadas a uma conjuntura como a presente, porque crentes não tinham, quedaram-se impotentes, com grande copia de bons desejos, palavras excelentes e muitas lagrimas, mas sem nenhuma influência de acção. «Dái a Deus o que é de Deus, e a Cesar o que é de Cesar» foi talvez o preceito fatal a que por demais se aferraram e que lhes abalou os fundamentos e desvairou as gentes. Da corrompida interpretação dêsse princípio veio que, devidido o mundo e a consciência em duas metades, uma para Deus e outra para Cesar, completamente se perdeu a noção da dependência em que Cesar estava de Deus, e impensadamente se dispensou a observância das obrigações correlativas; não mais se cuidou de subordinar Cesar a Deus, (os imperadores contam com o auxilio de Deus para os seus negócios e invocam-no como quem está seguro da honestidade e pontualidade do almoxarife), deu-se-lhe um reino seu, próprio e para todo o sempre, admitiu-se-lhe como prerogativa da corôa o desregramento, a violência, a soberba e a ira, e apagou-se a lembrança de que, se Cristo se fez homem, foi para revelar a possibilidade de uma humanidade redimida em Cristo, para operar uma perpétua e infinita renovação do mundo, para sobrepôr o reino de Deus ao reino de Cesar, até onde a fraqueza humana póde consentir que êle seja sobreposto. Assim cairam no rígido convencionalismo dogmático e em uma moral inalterável, fixa, excelente e eterna em muitos pontos mas em outros filha do tempo e a êle adaptada, sempre tarda em se aperfeiçoar, por demais segura da sua sumidade, por vezes propensa a indulgências com a cobardia religiosa, sem mesmo hesitar em abençoar exércitos que, sendo portadores do ódio e da morte, são a negação de Cristo, e até mesmo pondo sob a protecção da cruz as máquinas dos caminhos de ferro que são levitas e servidores horrendos de desapiedadas cobiças. Mas, porque isto acontecia ás igrejas prisioneiras da sua debilidade religiosa e de uma timidez mental singular, freqùentemente tambêm e infelizmente muito preocupadas dos seus privilégios, comodidades, pompas e domínio, nem por isso o cristianismo e a religião esmoreciam, nem por isso cessavam na conquista da terra que é sua e êles possúem cada vez mais inteiramente; a pressão dos factos, facultando insistentemente o reconhecimento da sublimidade da sua verdade, realisava o que a missão sacerdotal, mal entendida e mal cumprida, desprovida do animo dos primeiros dias, não tinha fôrças para indicar, derramar e, muito menos, manter. «Os horrores da guerra presente fizeram que muitos desesperassem do cristianismo e da cultura. Sentem que esta espécie de cristianismo e esta espécie de cultura que pódem produzir uma guerra terrivel como aquela de que estamos sendo testemunhas, deve ser qualquer cousa da natureza da impostura. Mas, por muito más que as cousas sejam, não há necessidade de desesperar. Um novo cristianismo e uma nova cultura surgem--o cristianismo do simples Evangelho de Cristo e a cultura dos profetas e dos poetas. Se estão contados os dias de uma falsa religião, não direi que a religião morreu. Se os combates e a crueldade tomam o logar da cultura, procurarei outra na nascente.» Foi nestes termos que Mauricio A. Canney definiu os desenganos e as esperanças da hora presente. De todas as amarguras, misérias, ansiedades e combates das sociedades modernas, agora lugubremente acordadas do torpor em que uma embriagada sensualidade as tinha anestesiadas, o que resultou, não foi a falência do cristianismo e da religião frouxamente guardados em suas igrejas onde durante prolongados séculos e por fortuna se acolheram, tiveram acesos os altares e espalharam a sua luz. Quer em espírito e abstracção, quer na solução dos problemas práticos, o que dos conflitos sociais do nosso tempo resulta é a vitória da religião e do cristianismo em toda a latitude, como promessa unica de salvação. Cresceram fóra das suas igrejas, com diferentes nomes e diferentes rubricas, sob diversissimas invocações, mesmo sob as que se propunham nega-los e, inscientemente, imaginando afugenta-los, destrui-los e substitui-los, os propagavam e defendiam; cresceram, porêm, continuamente e, sendo divinos, nunca como agora se mostraram necessidade terrena mais urgente e remédio mais seguro das nossas enfermidades, nunca como agora se levantaram a maior altura, erguidos não só pelos impulsos ingénuos do amor, que é e sempre foi todo o seu ser e substância, mas tambêm pela fôrça da razão e da logica, pela meditação e pela reflexão, pelas conclusões da inteligência e pela investigação das leis da vida, pelas demonstrações da experiência, pelas lições da história desapaixonada e isenta de toda a obsecação de sectarismo. A fé e a razão, durante dilatados séculos inimigas, identificaram-se em iguais aspirações e certezas, e transformaram a velha oposição e discordia em auxílio mútuo, no serviço da mesma paixão de verdade, no reconhecimento da mesma indigência do poder de conhecer, na contemplação do mesmo mistério, na justificação do mesmo amor e no respeito da mesma regra que dêsse princípio deriva. Religião, sciência e filosofia que fôram atrozmente irreconciliáveis, resolvendo nas fogueiras, nas masmorras, nos cadafalsos e nas praças suas divergências e conflictos, caminham hoje na mesma estrada e mutuamente se amparam para uma mesma jornada. Já a ninguem surpreende que um publicista de superior reputação se detenha a proclamar o «valor religioso do livre pensamento», significando por livre pensamento «a livre e honesta actividade do espírito». «A igreja católica da idade-média», disse êle justificando a sua tése, «a igreja protestante da Reforma, consideravam a sciência seu inimigo. Raciocinar sôbre as cousas santas era uma espécie de impiedade. Tinham de ser aceites como inquestionáveis desde que vinham de uma igreja infalível, em um caso, e de um livro infalível, em outro caso. O pensamento não tinha parte na religião, e o livre pensamento ainda menos, por modo algum; a religião era inteiramente uma fé, e receiava que essa fé podesse definir-se como um estudante a definiu--«aquela qualidade pela qual cremos em cousas que sabemos serem totalmente destituídas de verdade.» Mas a igreja de hoje, no seu melhor modo, acolhe bem o pensamento porque com êle está mais segura de si. Abandonando muita da sua bagagem tradicional, sabe que a que lhe resta está fóra de questão. Olhando mais ao espírito do que à letra, considera o pensamento não meramente um neutral mas um aliado. Começa a vêr que voltar as melhores fôrças do espírito cândida e reverentemente para as profundezas da crença é só por si um acto religioso. E esta nova amizade foi auxiliada por uma mudança de atitude da propria sciência... Um sinal da realidade da nossa fé é que não mais nos arreceiamos de a trazer para o campo largo da razão... Vemos as maiores fôrças do mundo, a religião e a sciência, levadas para qualquer cousa como um terreno comum. «A religião tornou-se objecto mais do espírito que da letra. As materias de menor importância, ritos e formas do governo da igreja e muitos dogmas, vão perdendo a sua fôrça porque nada têem da essencia da vida; mas as cousas grandes, os artigos cardiais da nossa fé, a crença na sabedoria e no amor de Deus e na divina mediação de Cristo, a crença em o nosso dever com os nossos irmãos, são, pensa ele, mais profundamente sentidos e mais sinceramente possuídos do que nunca. A sciência abdicou da sua velha arrogancia e está preparada para se apresentar de cabeça curvada, como um humilde investigador nos palácios do Oculto.» São aos feixes os depoimentos dos homens que nas escolas, na imprensa e no govêrno das nações testemunham esta unidade da sciência e da religião e o seu valor social. Tão numerosos já que claramente se juntam em uma torrente, no meio da qual o mais subido parecerá pequenino e vulgar. Se um homem da estatura mental de Keir Hardie, ao fim de uma dilatada vida de apostolado político, o mais nobre e religioso que póde conceber-se, confessa publicamente que, «se voltasse a ser um rapaz, abandonaria a política e se consagraria a prégar o Evangelho de Cristo», ouvimos nas suas palavras, não o desengano de um profeta mas a desilusão de uma época que, ardentemente empenhada em livrar a terra e os homens dos martírios que os crucificam, errou a estrada e foi procurar em mesquinhas artes e em artificios estreitamente humanos uma salvação que êles não continham. São a condemnação final de toda a idolatria materialista dos valores económicos e a certeza de que só a inspiração religiosa é capaz de nos oferecer a fortuna que a pobreza da nossa inteligência e as suas débeis construcções não fôram capazes de fundar. Ha poucos anos, em 1911, um escritor inglês, A. E. Fletcher, antigo director de um dos grandes jornais de Londres, publicou um pequeno livro, de sumo interesse e eloquente clareza, intitulado _O Sermão da Montanha e a Política prática_. Pretendia que «não podemos realizar imediatamente os ideais mais altos, mas podemos mover-nos em direcção da sua realização, e os nossos movimentos podem estar de harmonia com as leis da natureza humana». E afirmava e defendia que «essas leis foram supremamente compreendidas por Jesus Cristo, e são totalmente falseadas pelos que adoram Mamon e Belial». Depois, passando a mostrar mais desinvolvidamente como o Evangelho é uma lei prática, realizável e progressivamente realizada nas cousas da terra, e em particular na política, examinando a possibilidade de aplicação das bemaventuranças do cristianismo confiando a terra à simplicidade, à misericórdia e à doçura, e demonstrando-o, não por engenhosos sistemas e subtis abstrações mas pelos exemplos históricos mais vulgares, vinha por fim a afirmar que é possivel governar uma nação pelos princípios estabelecidos no Sermão da Montanha e que é sómente em quanto assim procedemos que a sociedade póde elevar-se dos tipos mais baixos aos mais altos. Podemos ir para diante no espírito do cristianismo, ficar estacionarios ou retroceder. A sua opinião é que vamos para diante. Crê que em tempo algum da história do seu país (e dos demais países, porque não diremos nós?), «a legislação social proseguiu de modo que mais satisfaça do que durante os ultimos anos. Os homens públicos podem não ter tido a consciência de que, adoptando uma legislação humana, emergem da barbaria para o cristianismo, mas subsiste o facto de que essa evolução prosegue». Para o compreendermos bastará lembrar o que a legislação social e política tem sido desde o comêço do século desenove--o que ela fez protegendo as crianças, de que infernos vem arrancando os trabalhadores, como repartiu a riqueza e acrescentou a dignidade, que lutas titânicas sustentou para isso, que barreiras formidáveis de prejuízos e vis interêsses lhe foi necessário transpôr e vencer. E que princípio, que fôrça realizava êsses milagres senão o cristianismo que dos livros sagrados se derramára nos códices das doutrinas e das instituições políticas? Se em matéria de cristianismo a guerra determinou alteração de valores, seria sem dúvida para ampliar, se ampliável fôsse, a preponderância daquele valor inabalável e eterno que no cristianismo se contem, sobretudo para o fazer repassar mais profundamente a consciência dos homens, definitivamente convencidos da necessidade de um predomínio maior ainda, infinitivamente mais profundo, dos princípios do Evangelho considerados na sua influência prática, na sua ilimitada aplicação à disciplina e conduta da vida. Um dos chefes mais graduados do partido do trabalho na Inglaterra, Filipe Snowden, dirigindo-se aos seus eleitores dizia que pensou que as fôrças unidas da democracia e das igrejas da Europa poderiam ter evitado a catástrofe da presente guerra. Mas os acontecimentos precipitaram-se por tal forma que as fôrças da democracia, da religião e dos pacifistas não tiveram tempo de mobilisar-se antes que as intrigas dos militaristas, monarcas e diplomatas soltassem as fúrias da guerra. Sempre acreditára e confessára que, se as nações da Europa continuassem na política internacional dos ultimos quinze anos, provocando hostilidades por uma concorrência doida nas despezas de armamentos, o resultado não podia ser senão a guerra. Mas, fôsse qual fôsse a causa da guerra, eram as classes trabalhadoras da Europa que dela tinham a responsabilidade. Desinteressando-se das questões internacionais, deixaram que a seu modo as regulassem os kaisers, os czares, os militaristas e os diplomatas, todos destituídos de simpatia pelas aspirações democráticas e levados por interesses económicos e outros opostos aos trabalhadores do mundo. Tivessem-se os trabalhadores apossado do govêrno das relações internacionais, e debalde se teria provocado a guerra e as suas calamidades, de cuja responsabilidade os trabalhadores não podiam livrar-se. Sem dúvida, o argumento do político experimentado e habituado a confiar no podêr da organização política terá seu fundamento e verdade. Não está longe de se conformar com a opinião dos que viram na guerra o naufrágio dos partidos socialistas, como garantia e propulsores de paz entre as nações. Mas para os estranhos às artes da actividade política prática, medianamente propensos a esperar das suas tramas a fortaleza que só no vigor das tendências do espírito encontram, o mais provável será que não fôsse a deficiência de direcção dos trabalhadores que deixou proseguir a guerra; antes teria acontecido que a insuficiência do espírito anti-militarista entre os trabalhadores não permitiu que êles se acautelassem e defendessem o mundo contra essa inqualificável monstruosidade. Para os que mais esperam da inspiração interior que do engenho prático, a responsabilidade dos trabalhadores está amplamente atenuada pela sua miséria material e indigência moral correlativa. A civilização moderna, fazendo-os escravos de uma escravidão de que a custo e com muitas penas se vão libertando, tudo lhes podia ensinar menos o cristianismo de cuja negação eram as vítimas revoltadas. Faltou-lhes a fôrça íntima que havia de pressentir e combater os manejos sórdidos das chancelarias, dos palácios e das casernas. Teria sido a debilidade religiosa, inevitável na sua condição, e não um simples erro de organisação, que deu causa à sua inércia e à sua rendição perante poderes que abominam. A previsão que os ha-de salvar e salvar-nos de iguais catástrofes no futuro só subsistirá quando a energia religiosa a guiar e exigir. Não ha capacidade prática, seja ela qual fôr, que seja suficiente para a substituir. Quando um poeta da lucidez moral e peregrino talento que enalteceu Eduardo Carpenter, encanecido em sua inquebrantável missão de amor, quando o génio bafejado pela santidade nos diz firme e docemente, de todo isento de ira injuriosa dos tímidos e vacilantes, que, para pôr termo a esta peste da guerra, _não há senão um remédio_, e é «o geral abandono dêste sistema de vivermos do trabalho dos outros», poderá parecer-nos que simplifica em extremo e reduz a proporções demasiado mesquinhas um conflicto de proporções gigantescas que é uma dôr e uma agonia para o mundo inteiro. Suspeitaremos capricho da destreza do filósofo ou uma violência sagaz nesta segurança com que êle pretende fazer entrar na regra comum o que por mil modos se mostra uma anormalidade tão complexa como estupenda. Mas, se reflectirmos, ligeiramente que seja, de pronto nos convencemos de que nem a afirmação do profeta se afasta dos limites e da lógica dos factos averiguados, nem os seus vaticínios são outra cousa senão a voz deste cristianismo que em renascimento assombroso se faz ouvir e é juíz em todo o sistema das relações sociais, desde a ínfima humildade de um servo que nos comove até á soberba das potestades da terra que nos ameaçam. Essa é a causa da guerra, este sistema de viver do trabalho dos outros, negação formal do cristianismo, ou se siga entre os indivíduos ou entre as nações, e isso mesmo o tem sido desde o princípio do mundo. Fôram para isto as primeiras guerras primitivas, «para apreender gados e colheitas, para apanhar escravos de cujo trabalho os conquistadores podessem subsistir; e são a mesma cousa as ultimas guerras. Adquirir concessões de borracha, minas de ouro, minas de diamantes em que o trabalho de gente de côr seja explorado até ao extremo mais amargo; apossar-se de colonias e terras distantes, onde empresas capitalistas gigantes (com o trabalho de brancos ou de gente de côr) possam realisar dividendos imensos, pela subida do minério ou de outros productos industriais; esmagar qualquer outro poder que nos estorve no caminho destas avidas e deshumanas ambições:--tais são os fins das guerras de hoje. E nós não vemos a causa do mal porque êle está tão perto de nós, porque nos anda no sangue. Toda a vida particular das classes capitalistas e comerciais, que hoje são os representantes das nações, se funda em o mesmo princípio. Como indivíduos, o nosso unico fim é encontrar algum trabalhador ou grupo de trabalhadores cujo trabalho valoríse o que nós podemos apropriar... Um parasitismo sem disfarce e sem vergonha é a ordem, ou a desordem dos nossos dias. A rapacidade dos animais de preza mal se oculta em a nossa vida social, transparentemente velada todavia por uma aguada de sentimento «cristão» e por uma rede de instituições filantrópicas para suposto benefício das muitas vítimas que nós espoliamos. «Que há pois que admirar se êste princípio de rapacidade e guerra intestina que governa a nossa condição, se esta cobiça vulgar que nos cobre o corpo de jóias e peles, e nos cobre a meza de alimentos caros, sem considerar aqueles a quem arrancámos êsses confortos, que há pois que admirar se por fim resultam na rapacidade e violência sôbre o vasto teatro do drama das nações, e nas letras vermelhas da guerra e do conflito, escritas através dos continentes? De nada serve dizermos com uma presumida piedade que estamos em campo para banir a guerra e o militarismo, animando nós entretanto em nossa própria vida e em a nossa igreja, ligas do império e outras instituições, o mais sordido e egoista mercantilismo, que em si é essêncialmente uma guerra, apenas uma guerra de um género muito mais insignificante e mais cobarde do que aquele que se assinala no embate das tropas ou na furia das espingardas e dos canhões. Não, não há outro meio; e só pelo abandono geral do sistêma comercial e capitalista presente será banida a peste da guerra[6].» Êstes são os acanhados e míseros termos a que as fúrias da guerra se reduzem, esta é a palpitação do seu imundo ventre--uma derrogação do princípio cristão, perfeitamente idêntica em suas causas e efeitos a qualquer outra das que quotidianamente praticamos em nossa existência e que o hábito nos velou com uma empedernida inconsciência. Apontá-la em uma tal simplicidade é uma revelação salutar, grande e fecunda esmola. Acusados e pelo próprio pungir da acusação saberemos o que o cristianismo significa na hora presente, até onde chegam as suas bençãos e anatemas, e conheceremos, com um profundo suspiro de alívio, que influências imponderáveis nos subjugam, que novas fôrças lenta e latentemente se criaram, e que espécie de revolução, ou, melhor, de resurreição nos anunciam. Áspero e obscuro se mostra, porêm, o caminho da vitória, porque ao mesmo tempo que um cataclismo nos revela a inanidade da nossa presumida fortaleza, deixa-nos incertos sôbre o valor das fôrças que podem edificá-la. E aquilo de que mais esperávamos, a razão, o desenvolvimento da inteligência na humanidade, o conhecimento da história e a observação minuciosa e exacta da evolução das sociedades, todo êsse honesto labor das universidades, da imprensa, dos pensadores, dos poetas, de quantos por qualquer meio se tornaram verdadeiros pastores das nossas almas, tudo isso que é um assombro da capacidade mental dos homens, tudo foi vão para evitar as provações a que um destino sinistro nos conduziu. Se a razão só por si podesse vencer, um libelo contra a guerra como êsse que Norman Angell ofereceu ao mundo culto na _Grande Ilusão_, largamente comentado pelo autor e pelos estranhos, e recentemente acrescentado e renovado no _Prussianismo e a sua Destilação_, isso bastava para que a paz e a guerra fôssem um pleito findo. Compendiando muitos séculos da história da humanidade e os factos essênciais da vida política e económica dos nossos dias, definindo e conjugando o que vaga e fragmentáriamente todos sentiamos e pensavamos, o pregão de Norman Angell mostrou-nos que a doutrina que constitue a grande ilusão é a crença de que as cousas de maior valor na vida, aquelas que representam os fins das sociedades humanas, só podem alcançar-se pelo desenvolvimento da fôrça política e militar dos estados, pela extensão do seu território e pelo domínio dos seus govêrnos. Esta doutrina, proeminente e característica na Prussia, tornára-se afinal comum a toda a Europa por virtude de um deplorável contágio. Para a debelar não bastavam combinações diplomáticas e a revisão de fronteiras; nascida de certas tendências de espírito, só por tendências opostas poderia ser vencida. Foram os professores, as academias e os publicistas que durante cinqùenta anos a propagaram; e só por um trabalho de identica natureza poderia ser afastada. Não seria pelo ferro e pelo fogo que haviamos de nos libertar da sua calamitosa sujeição. Era vêr o que tinha acontecido com as guerras da religião; debalde sacrificaram milhões de vidas, quando tentaram sustentar as crenças pela fôrça, e só terminaram, dando a toda a fé a liberdade, quando o espírito a conquistou, quando a fermentação intelectual e a estimativa dos valores morais, a sua discussão pacífica e a sua comparação, demonstraram a inanidade da fôrça na sustentação dos altares. Assim acontece e se verifica que «o combate pelos ideais não póde mais tomar a forma de combate entre as nações, porque as questões morais estão dentro das próprias nações e cruzam as fronteiras políticas. Não há estado algum moderno que seja completamente católico ou protestante, liberal ou autocrático, aristocrático ou democrático, socialista ou individualista. As lutas espirituais e morais do mundo moderno proseguem entre os cidadãos do mesmo estado em uma cooperação intelectual inconsciente com os grupos correspondentes dos outros estados, e não entre os poderes publicos dos estados rivais». Política e economicamente se tem estabelecido uma situação paralela em que «a estratificação das sociedades» se sobrepõe aos artificios das divisões nacionais. O mundo tende a repartir-se, não pela fôrça das espadas mas pela coesão dos espíritos e dos interêsses. «É impossivel», diz Baty, citado por Norman Angell, «ignorar a significação dos congressos internacionais não só do socialismo mas do pacifismo, do esperantismo, do feminismo, de toda a espécie das artes e sciências, que tão claramente marcam os seus sinais nas épocas de férias. A nacionalidade, como fôrça de limitar, cede perante o cosmopolitismo... Encontramos a aproximar-se uma situação em que a fôrça da nacionalidade será distintamente inferior à coesão de classe, e na qual as classes se organizarão internacionalmente de forma a aproveitarem os efeitos da sua fôrça». O que Norman Angell repete, acentuando que «por mil modos a associação atravessa os limites dos estados, que são puramente convencionais, e torna uma inépcia scientifica a divisão biológica do género humano em estados independentes e combatentes». «Ninguêm pensa em respeitar um _mujik_ russo porque pertence a uma grande nação, ou em desprezar um fidalgo escandinavo ou belga porque pertence a uma nação pequena». «Viremos a compreender que as divisões reais psíquicas e morais não são entre as nações, mas entre as concepções opostas da vida». Dada a lei de aceleração a que as sociedades humanas evidentemente obedecem, a predominancia e império da nova concepção das relações entre os povos será em breves anos uma realidade. E a acção dessa lei efectua-se com uma rapidez vertiginosa. «A idade do homem sôbre a terra tem sido diversamente reputada entre trinta mil e trezentos mil anos. A certos respeitos, desenvolveu-se mais nestes últimos duzentos anos do que em todas as épocas precedentes. Vemos hoje maiores mudanças em dez anos do que primitivamente em dez mil. Quem póde prevêr os desenvolvimentos de uma geração?». Nem se diga que o mundo foi sempre o mesmo e não muda, nem que a natureza humana não é susceptível de mudar. A história é a negação radical de semelhante afirmação, que não passa de refugio infantil de retardatários. Do canibalismo à cooperação, do duelo aos tribunais, dos autos de fé à liberdade religiosa, do heroismo divinisado ao espírito militar combatido como um crime, a humanidade renasceu; e, se exteriormente é bem diferente do que foi na sua origem, intimamente anima-a um espírito que desconhece e repele aquele de pura animalidade que algum dia foi sua razão de ser. Civilisou-se; de bandos famintos, devastadores e crueis, passou à comunidade moral e religiosa, e a civilisação desenvolveu-se na razão inversa da fortaleza do espírito militar. «Á medida que os homens perdem a tendência de combater, cresce-lhes a tendência para trabalhar, e é trabalhando juntos, e não combatendo-se, que os homens progridem». Só pelo «hipnotismo de uma terminologia que se tornou obsoleta» o espírito militar, muito a custo e decaíndo, continuamente se sustenta. De resto, há muito é sabido e demonstrado que as guerras são instrumento de degradação das raças. Matam os melhores, a flôr da espécie, os mais sãos e corajosos, e deixam confiada aos débeis e menos aptos a procriação das novas gerações. Na guerra com a Alemanha, a própria Inglaterra, apezar de toda a resistência do espírito da sua raça, corre o risco de perder as suas melhores qualidades. Combatendo o prussianismo póde prejudicar-se na diligência de o vencer pela adopção das suas armas e pelo abandôno das virtudes que a tornaram grande, «a aptidão de iniciativa, a confiança no próprio esfôrço, a sua obstinada resistência à intervenção do estado (já enfraquecida), a sua impaciência com a burocracia e a lista vermelha (tambêm já a decaír), tudo o que se involve na sua geral rebeldia de arregimentação». «A fôrça empregada para aperfeiçoar a cooperação entre as partes, para facilitar a troca, promove o progresso; a fôrça que combate essa cooperação, que procura substituír pela coacção o benefício mútuo da troca, que é em certo modo uma fórma de parasitismo, promove o retrocesso». A luta entre as nações «é um anacronismo». «Poucos compreendem até que ponto a fôrça física foi substituída nas cousas humanas pela pressão económica--usando êste termo no seu justo sentido, não só como a disputa do dinheiro, mas compreendendo quanto nisso se involve, bem-estar, consideração social e tudo o mais. O espírito primitivo não compreendia um mundo em que as cousas não fôssem todas reguladas pela fôrça. Mesmo os grandes espíritos da antiguidade não acreditavam que o mundo podesse ser laborioso, senão quando a grande massa se tornasse laboriosa pelo uso da fôrça física, isto é, pela escravatura. Tres quartas partes dos que nos dias mais florescentes de Roma povoavam o que agora é a Itália, eram escravos, acorrentados no campo quando trabalhavam, acorrentados à noite nos dormitórios e, os que eram porteiros, acorrentados aos portais. Era uma sociedade de escravos--escravos para combate, escravos para trabalhar, escravos para cultivar, escravos oficiais e, acrescenta Gibbon, o próprio imperador era um escravo, «o primeiro escravo nas cerimónias que êle prescrevia». Sendo grandes e penetrantes muitos dos espíritos da antiguidade, nenhum deles mostrou uma larga concepção de uma condição social em que a coacção física fôsse substituída pelo impulso económico. (Aristoteles sentiu todavia um lampejo de verdade, quando disse que, «se o martelo e a lançadeira podessem mover-se por si», a escravidão seria desnecessária). Dissessem-lhes que havia de chegar tempo em que o mundo trabalharia muito mais activamente sob o impulso de uma causa abstracta chamada interesse económico, e êles considerariam semelhante asserção como a de meros teóricos sentimentais. Nem temos necessidade de irmos tão longe»; se ha sessenta anos afiançássemos a um senhor de escravos americanos que pelo trabalho livre êle havia de ter mais algodão do que pela escravatura, por certo se riria da nossa credulidade. Sem dúvida, por efeito da lei de aceleração a que as sociedades humanas andam sujeitas, é de todos os tempos, mas principalmente da nossa época, esta derrota da guerra pela economia, esta substituição do combate pela coadjuvação, que se tornou o meio mais seguro e rendoso não só de vivermos em paz, o que já seria muito, mas tambêm de acrescentarmos os bens e multiplicarmos as riquezas, o que, por isso mesmo que satisfaz a ambição, por isso é comum e abrange o espírito mais elevado e o mais mesquinho, por isso se torna uma fôrça universal em todo o sentido. Do anacronismo e futilidade da guerra foi já convencido por mestres competentes todo o mundo culto, quási todo o mundo que sabe lêr. E todavia a guerra persiste, porque, para a banir, a razão não basta, só o coração purificado e exaltado pelo espírito cristão é capaz de consumar êsse prodigioso renascimento. Mas como, por que modo poderão essas forças prevalecer? Por que meios poderá tornar-se efectiva na vida nacional e internacional dos povos êsse espírito cristão que agora despertado por uma catástrofe estupenda se ergue como uma aurora de redenção? Onde encontrará armas para combater o inimigo, a satânica sensualidade que fundou o mundo moderno em ambições tôrpes e em materialidades e que, é evidente, não abdicará do seu reino passada a tormenta? Como é que um pensamento religioso só por si ha-de destroçar os poderes da terra enriquecidos, armados e incessantes na avidez? Pelas ligas e tribunais de paz, pelos ajustes diplomáticos, pela redução dos armamentos, por todos êsses «retalhos de papel» que se rasgam ao primeiro ímpeto, como a Alemanha rasgou o compromisso que a obrigava a respeitar a neutralidade da Bélgica?!... Não é todo êsse impulso cristão um arrebatamento de idealismo destinado a naufragar no mar imenso e tormentoso das realidades? Se as igrejas em suas fortalezas seculares não poderam subjugar os homens e sujeita-los à lei de Cristo, como é que de esforços dispersos e boas intenções há-de tirar-se uma fôrça que domine os estados e lhes trace a sua regra? Ferrero, o historiador da _Grandeza e Decadência de Roma_, diz-nos no último volume de sua obra que, «emquanto em Roma, à volta de Augusto, a pequena oligarquia dos dominadores, que julgava que tudo, mesmo o futuro, dependia dela, se exgotava em discórdias furiosas e em tentativas contraditórias para afeiçoar o futuro a seu modo, êsse futuro por si mesmo se fazia no grande império, e muito diferente daquilo que se tinha pensado. Emquanto Augusto se dava a tantas penas para reorganizar em Roma o govêrno aristocrático, acontecia que por si mesmas, pouco a pouco, e pelos esforços de milhões de homens inconscientes do resultado final, as regiões do império que mais diferiam pela língua, pela raça, pelas tradições, pelo clima, mútuamente se penetraram e chegaram a uma unidade económica muito compacta; interesses materiais que infinitamente se encadeavam, tinham-nas mais estreitamente ligadas do que o podiam fazer as leis e as legiões de Roma ou a vontade do senado e dos imperadores. Era por êsse trabalho interior, invisivel, de que ninguêm tinha consciência, que o ajuntamento acidental dos territórios feito pela conquista e pela diplomacia se tornava verdadeiramente um só corpo, animado de uma vontade única». Soluções congéneres e paralelas dos problemas da vida das nações e da constituição psicológica dos povos vem apontadas e defendidas com uma grande clareza em um pequeno livro ultimamente publicado na Inglaterra. Dedicado à _Workers' Educational Association_, e por isso posto em termos de ser compreendido alêm do mundo dos letrados e erúditos, colaborado por professores eminentes das universidades de Cambridge e Oxford, mais cingido aos factos do que enlevado na sedução de abstrações e idealismos, procura êsse excelente trabalho esclarecer-nos sôbre a crise que a guerra representa nos destinos da democracia, e com um exito manifesto muito instrue os menos versados nas questões políticas, mas nem por isso menos interessados e dedicados na determinação final de uma situação das nações da Europa, que terá de ser de larguissimas conseqùências na fortuna ou na desgraça dos povos que elas compreendem. Considera êsse livro que na tarefa em que nos propomos fundar o domínio da lei, direitos civis universais e a abolição da guerra, há dois processos. Um consiste na pressão dos governos e nos seus ajustes e convenções, em tudo isso que anda sonhado e fragmentado em criações e aspirações de tribunais de paz, em planos de desarmamento, em tratados de arbitragem e em muitas outras ingenuidades correlativas, tão cativantes na candura da sua fé como débeis na eficácia. Evidentemente, todas naufragam na impossibilidade de serem sancionadas pela fôrça, quando a loucura ou a perversidade dos homens as desrespeitarem. Quando os conflitos surgirem, onde estão os exércitos que tornam soberanas e uma realidade as decisões dos tribunais? Quando uma nação, armada e grande, afrontar as obrigações dos _retalhos de papel_ e os rasgar, quem tornará de bronze a vontade dos tribunais e converterá em mármore a precária consistência do papel? Um revoltado bastará para atraiçoar as intenções mais firmes e felizes, e para inundar a terra de uma chuva de sangue e de fôgo. Todos êsses engenhosos contratos podem «ser alivio por algum tempo e preparar o caminho para progressos ulteriores, mas só por si não podem dar segurança alguma permanente, nenhuma justificação satisfatória para o abandôno de meios defensivos, da parte dos vários govêrnos soberanos e em bem das suas nações». Sem dúvida, embora encontrem dificuldades irredutiveis para se manterem, nem por isso são de desprezar êsses ajustes e contratos. Pelo contrário, merecem ser promovidos e aproveitados. Sómente convém não lhes atribuir valôr que não comportam, ou esperar da sua acção uma fortaleza que as suas faculdades não atingem. Pois, de resto, significam altos beneficios; pressupõem a supremacia do Direito sôbre a Fôrça no espírito colectivo da humanidade civilisada, uma supremacia definitiva daquilo que póde chamar-se o ideal civil contra o ideal militar, não em a maioria dos estados mas em todos os estados suficientemente poderosos para desafiar a violência. Pressupõem um mapa do mundo traçado definitivamente em linhas que satisfaçam as aspirações nacionais dos povos. Pressupõem um _status quo_ que se mantem, não simplesmente, como o de 1915, porque é um facto legal e a sua perturbação seria inconveniente para os govêrnos existentes, mas porque é meramente equitativo. Pressupõem uma base democrática de direitos civis e representação idêntica entre todos os estados componentes. Pressupõem, finalmente, uma opinião pública educada, incomparavelmente menos egoista, menos ignorante, menos flutuante, menos materialista, e menos estreitamente nacional do que aquela que até aqui tem prevalecido». O outro processo «pode parecer, nesta hora de sonhos e desastre, de extremos de esperança e desilusão, um trilho longo e enfadonho. E a velha estrada larga da civilisação, não os atalhos através dos campos. Espera resultados duradouros, não da cooperação mecânica dos govêrnos, mas do crescimento de um direito civil orgânico, pela educação das próprias nações no sentimento do dever e da vida comum. Espera, não o estabelecimento definido do Estado do mundo em nossos dias, mas sómente uma refutação definida da perniciosa teoria da incompatibilidade mútua das nações. Espera a expressão do govêrno do mundo na ordem externa, daquilo que podemos chamar o _princípio da República_, do grande princípio de lord Acton, do estado composto de nações livres, do estado como um corpo vivo, que vive pela união orgânica e livre actividade dos seus diversos membros. E encontra o seu imediato campo de acção no alargamento da profundeza e extensão das obrigações civis entre os povos das grandes, livres, justas, supranacionais repúblicas, cujo patriotismo foi edificado, não por preceito e doutrina, mas sôbre o firme fundamento das mais antigas lealdades». «Os problemas derivados do contacto das raças e das nações nunca podem ser resolvidos nem pela acção prudente dos indivíduos nem por conflito e guerra; só têem solução em uma política deliberada e recta no seio de cada estado, no reconhecimento por ambas as partes de exigências mais altas do que os seus interesses seccionais--as exigências de direitos civis comuns e do interêsse da civilisação. Nisto, na união e colaboração das diversas raças e dos diversos povos, é que o princípio da República encontra o seu campo peculiar de operação. Sem êste princípio... o mundo será o caos que hoje é»[7]. Eis aí a lei suprema da história--a preponderância da actividade interior e inconsciente dos povos sobrepondo-se às lucubrações, aos decretos, às legiões, à vontade e à vaidade e inanidade dos capitães e dos imperadores, e preterindo-os inexoravelmente em todos os grandes movimentos da humanidade. Roma e a constituição jurídica e moral do mundo latino que dela nasceu e é seu espelho, foi apenas o maior exemplo da inflexibilidade dessa lei do desenvolvimento das raças, duas vezes repetido naquele lugar, primeiro criando a unidade política da civilisação, e depois refazendo-a, quando, decrépita, carecia de ser renovada pela unidade religiosa. A face das cousas parece mudar mas sómente a sua face muda; em sua essência permanecem sujeitas à mesma lei, idêntica e constante nos grandes feitos como nos mais pequenos, de fronteiras a dentro das nações como em toda a largueza dos continentes. Se o cristianismo tem de prevalecer e redimir das suas misérias o mundo, será únicamente por «êsses esfôrços de milhões de homens inconscientes do resultado final», por «êsse trabalho interior, invisível, de que ninguêm tem consciência», por efeito dessa misteriosa disseminação. Quando as leis escritas a definirem e reconhecerem, será porque de facto a sua vitória a isso as obrigou. Não serão elas que lhe hão-de dar ou roubar o seu domínio. Quarenta anos de materialismo brutal, inflamado por um mesquinho e desvairado orgulho scientífico, terminam hoje na guerra a sua obscurecida fama e glória, aquela por demais terrena que ao seu espírito correspondia e que era a única a que a sua fascinação podia conduzir. Esse materialismo cái pela fragilidade das suas edificações, porque só produzia dôres onde prometia alegrias, só acumulava ruinas onde ostentára traiçoeiras prosperidades. Mas, antes que um cataclismo inaudito lhe demonstrasse a estreiteza e inconsistência, um trabalho subtil lhe minára os fundamentos: aniquilivam-no aquêles mesmos que o haviam gerado e nutrido, os apóstolos e os seus fiéis, os filósofos e os pensadores, a inspiração dos poetas, as academias, e sobretudo as multidões que os ouviam, sentiam e interpretavam, fatigadas de errores e de desprendimento religioso e moral; e, verificando pela experiência de agudos instintos os benefícios e os males das doutrinas e das crenças, conforme a verdade e felicidade que lhes trazem ou lhes roubam, assim as amaldiçôam ou engrandecem. São êsses poderes invisíveis e imponderáveis, que habitam no coração das multidões anónimas, que nos dirigem e dão a vida e a morte, nos indivíduos como nas sociedades. Só êsses poderão libertar-nos da guerra ou eternisar a sua danação; e as igrejas valerão então o que valer a sua obediência ao princípio cristão, e os estados serão um flagelo, se em acção o negarem, ou uma fortuna, se o respeitarem e traduzirem nas cousas da terra e nas relações entre as nações. Da arte de gastar e suas responsabilidades «Uma crise grave ilumina e descobre perigos que se não suspeitavam; hábitos que anteriormente nos pareciam tão inocentes e naturais que nenhum mal encerravam, mostram-se com uma dupla face nos seus efeitos. Parece que se torna necessaria mais reflexão; e, posto que nos seja impossível achar remédio simples para ruins efeitos, sabemos que, começando a pensar honestamente, teremos probabilidades de achar o caminho de melhores hábitos. «Será esperar muito que entre outras cousas boas que podem resultar desta negra crise, venha a nascer um certo acordar, da nossa parte, quanto à futilidade, assim como quanto ao perigo, de muitas das nossas despesas? Não é bem para uma nação que uma quarta parte dos seus rendimentos se gaste de um modo inconstante. Não é bem para uma nação que a quarta parte da sua capacidade de trabalho se especialise a produzir cousas que se vêem e sentem destituídas de valor, mal uma crise o vem pôr em prova. De resto, os ricos não são os únicos que no seu gastar estão em falta; tambêm os pobres teem os seus poucos luxos inuteis. Mas são os ricos, e não os pobres, que individualmente teem maior responsabilidade na errada direcção do trabalho, emquanto são êles que individualmente possuem maior poder de gastar e são, por conseguinte, os que gozam de maior liberdade para escolherem o modo por que hão-de usar êsse poder.» A isto vem, em suas conclusões finais, o opúsculo precioso que, sob o titulo de _Spending in War Time_, o professor E. J. Urwick publicou, em Oxford, na colecção de _Papers for War Time_, dirigida por W. Temple. Inspirada na convicção de que «esta guerra é o resultado e a revelação dos princípios anti-cristãos que dominaram a vida da cristandade do ocidente, e dos quais tanto as igrejas como as nações carecem de se arrepender», essa colecção é uma crítica penetrante e serena de muitas angustias em que a indigência e a perversão religiosa nos lançaram, e é simultâneamente um estudo magnifico de diversos problemas que a ansiedade de melhores dias definiu e pôz, não sem esperança de soluções por igual próprias a satisfazer as investigações da consciência moral e as necessidades da vida prática. Os que seguem a Cristo, estão unidos entre si em uma comunhão superior a todas as divisões de nacionalidade e de raça; «os deveres cristãos e de amor e de perdão prendem-nos tanto em tempo de guerra como em tempo de paz». E os cristãos teem de reconhecer «a insuficiência da mera compulsão para vencer o mal, e de guardar a confiança suprema nas fôrças espirituais, particularmente no poder e no método da Cruz». Disso depende, no conceito dos que se associaram à missão de que os opusculos daquela colecção são inteligente testemunho e instrumento eficaz, disso depende uma paz duradoura. Para o conseguirmos, torna-se necessario um novo esfôrço com o fim de aplicarmos em todas as relações da vida a aspiração de comunhão e fraternidade; e neste pensamento cada um, examinando os seus recursos, virá a considerar o que faz e o que deve fazer dos meios económicos que o destino lhe facultou, como serve ou contraría os princípios cristãos e o seu reino na terra, e especialmente como favorece ou embaraça a solução dos conflitos económicos que a guerra exacerbou e revelou com uma dolorosissima evidência. O problema será de minguado alcance para todos aqueles a quem a exiguidade de meios determina e restringe imperiosamente a natureza e extensão das despesas. Esses gastam o que não podem deixar de gastar para se sustentarem, quando freqùêntemente, e por desgraça, não são reduzidos ao extremo de não gastarem sequer aquilo de que careciam para o seu parco sustento, porque de todo lhes faltam os meios indispensáveis. Mas não acontece assim com outros, ainda numerosos, de facto representando uma fôrça poderosa na actividade das sociedades; e êstes, tendo mais do que o necessário para o sustento, ficam por isso com uma larga margem para a livre distribuição de grande parte dos seus haveres pelas despesas que lhe aprouverem, e paralelamente estão sujeitos às responsabilidades que a sua abundancia e liberdade implica. E êstes o que fazem, sobretudo o que devem fazer na crise presente? Continuam as suas despesas de luxo e a sua prodigalidade de futilidades em prejuizo de despesas de necessidade social urgente, continuam em seus regalos, ignorando a indigência dos oprimidos e famintos? Ou, para acudirem aos necessitados, derivam das suas dissipações habituais as somas que nelas empregavam, e para isso criam novas legiões de indigentes, condenando à miséria, pela cessação do trabalho, aquêles que lhes serviam as dissipações, provendo-lhes o luxo e as futilidades, disso auferindo o pão de cada dia e para isso tendo sido educados por longos anos de prática e especialisação, que não raro os tornaram inaptos para outras profissões? A situação é de uma agudeza extrema. Para qualquer lado que se movam os que teem disponibilidades a empregar, ou persistam nos antigos hábitos ou tomem por caminho novo, já não fugirão a semeiar privações, alongando-as a uns porque não lhes dão o pão que deveriam dar-lhes, e causando-as a outros se, para acudirem aos primeiros, se apartam dos ultimos, negando-lhes o que até aí lhes davam e em certo modo prometiam dar-lhes, pela invariabilidade do que lhes pediam. A conjuntura é opressiva, e fômos nós, por nossa vontade, que lhe demos causa, por nossa pobreza de senso moral, por um deplorável abandono a toda a casta de apetites. Organisamos e distribuímos as nossas despesas sem cuidarmos das responsabilidades económicas que elas importam, constantemente de profundo alcance e agora cruelmente postas a nú pela perturbação em que a guerra desfez muita ficção e muita ilusão. Seriam as nossas despesas como essas doenças latentes, graves, fatais, que se escondem em aparências de saúde e artes de bem trajar, e que uma febre acidental revela aos que em sua negligência não as tinham previsto nem sentido, aterrando-os então pela iminência de perigos mortais e pela presença de própria miséria. Por uma incúria que é o indício da lastimosa leveza de consciência moral e religiosa de que nos deixamos possuir, viemos a regular ordináriamente as despesas e toda a distribuição dos nossos bens segundo o volume dos meios de que dispomos e segundo os apetites que nos incitavam e cuja legitimidade nem de longe discutiamos. Desprendemos-nos da consideração das conseqùências ulteriores da aplicação dos nossos haveres; jámais ponderamos, como obrigação e dever, que género de trabalho êles criavam, quantos trabalhadores alimentavam e em que condição os mantinham, que influência social exerciamos por êsse modo, que bem-estar ou que miséria dependia de nós, que instabilidade e perigos conseqùêntes eram os companheiros obrigados das nossas obras e tendências. Vamos em uma leviana e traiçoeira certeza de que gastando, seja como fôr, beneficiamos o comércio e acrescentamos a riqueza e o tráfego, unicamente porque demos emprego a muitos braços. Na verdade, assim acontece; o nosso luxo e a nossa dissipação significam o sustento de muita gente. Sómente esquecemos, e o mais das vezes ignoramos inteiramente, porque, à falta de vigor moral bastante, isso escapa à nossa atenção e nem de longe nos toca, e muito menos preocupa a consciência, sómente não perguntamos que especialização de trabalho e de capital os nossos hábitos determinam, que espécie de constituição económica criam e sustentam, e de que enfermidades ela padece e faz padecer os homens que lhe estão sujeitos. Pois é evidente que será, por exemplo, muito diversa em seus riscos a situação de costureiras empregadas a fazer vestidos de baile, para êsse trabalho amestradas, e a situação dessas mesmas costureiras empregadas a coserem blusas de trabalhadores. Ao mais pequeno alvoroço mercantil ou qualquer outro, cessam os bailes, as costureiras ficam sem trabalho e anula-se o capital que lhes era destinado, desaparece; emquanto só em ultima miséria e na maior calamidade deixam de ser necessarias as blusas dos trabalhores, e cessa de se aproveitar o capital de que o seu fabrico carece, e se suspende ou interrompe o pagamento do trabalho que reclamam. São infinitamente e manifestamente menos numerosas as contigências de retribuição do cavador do que do ourives; entre êles há toda a distancia que vai das necessidades essênciais da existência aos caprichos acidentais de adorno e de prazer. E dada a dificuldade, e em muitos casos a impossibilidade de mudar de profissão ao sabor dos mercados, porque o desenvolvimento de certas aptidões implica, em geral, o afrouxamento, e em breve a atrofia completa, de outras capacidades, compreender-se-á quanto importa para a fortuna dos trabalhadores o género de trabalho que lhes reclamamos e o género de mercadoria que lhes pedimos e, porque lho pedimos, os convidamos e na realidade obrigamos a produzir. Nós, os da gente fina e boa gente, «lisongeamos-nos», diz o sr. Urwick, «crendo que, só pelo simples acto de gastarmos dinheiro, prestamos um assinalado serviço à indústria, _beneficiando o comércio e dando emprego_. Isto, como todo o economista sabe, é realmente um sofisma. Mas é o mais plausivel dos sofismas e muito popular; e a sua plausibilidade reside no facto de conter uma semi-verdade. É essa semi-verdade que agora temos a considerar; o sofisma apreciá-lo hemos dentro em breve. É indubitavelmente verdadeiro que todo o dispendio de dinheiro significa a inclinação da indústria para certa via. Quem gasta uma libra em sapatos, estimula por isso os patrões e os operários a fazerem sapatos e a proseguir no fabrico dos sapatos, em vez de produzirem qualquer outra cousa. Não sustenta ou mantém a indústria dos sapatos no sentido rigoroso da palavra; mas faz que o trabalho e o capital se consagrem espontaneamente ao fabrico dos sapatos de preferência a fazerem sacos. No momento presente vemos isto operando em larga escala; uma soma enorme de dinheiro se está gastando em panos de _khaki_, resultando daí que correspondentemente uma larga quantidade de trabalho e capital (incluindo a de alguns antigos fabricantes de calçado) é dirigida para a produção dos uniformes de _khaki_. Ora esta direcção do trabalho e do capital involve alguma cousa mais do que puramente se lhes dar ordem para fazerem isto em vez daquilo. Usualmente significa que dá causa a que os trabalhadores e o capital dos patrões se tornem altamente especialisados para o trabalho particular que lhes pedem; tornam-se, por conseguinte, aptos para este trabalho e para nenhum outro. Isto ainda é mais verdadeiro na direcção do trabalho devido às despezas da gente rica; em geral, requer-se por exemplo maior especialização da parte dos fabricantes de vestidos ou de sapatos muito caros do que da parte dos fabricantes de vestidos ou sapatos mais baratos. Ora a dificuldade com todos os trabalhadores de uma alta especialisação (e com o capital altamente especialisado e a habilidade de dar emprego que com êles operam) é que não podem facilmente adaptar-se a fazer qualquer outro trabalho. O costureiro hábil não pode mudar e coser _khaki_; o ourives hábil não servirá de muito para fabricante de espingardas ou para construtor de cabanas. É por isso que hoje os grupos de pacientes mais dignos de dó são justamente aqueles trabalhadores que durante anos dependeram da freguezia da gente fina. Na realidade, dependeram e dependem literalmente de nós, neste sentido--fômos nós que os convidamos a abrirem lojas e a exercerem um comércio próprio para satisfazer as nossas necessidades, e a ganharem a sua vida por este modo e só por este modo. São, por conseguinte, os _nossos_ trabalhadores, os _nossos_ dependentes, tão literalmente como se fôssem os nossos criados; e no momento em que cessamos ou alterámos os nossos hábitos de gastar, estão arruinados». De modo que, chegados a uma conjuntura como a presente, é muito bom dizer:--«Reduzam-se as despezas ao essencial; suprimam-se todas as despezas supérfluas». Mas logo surgem duvidas e perguntam:--«E os trabalhadores que criamos para satisfazerem as nossas despezas supérfluas de que hão-de viver?...» «A dificuldade vem de habitos de gastar que se baseiam em um sofisma perigoso». Os embaraços economicos presentes são a derivação lógica de uma errada constituição económica anterior. Talvez pelas condições do indústrialismo moderno, que apartou em um desligamento profundo os trabalhadores e quem êles servem e os emprega, talvez por essa mecânica de uma absurda divisão do trabalho, que fez que de ordinario não saibamos onde se criou o pão que comemos, nem quem o fabricou, nem quem fiou e teceu o linho e a lã que nos cobrem, o certo é que absolutamente se obliterou o sentimento da responsabilidade na arte de gastar, e de todo deixamos que prevaleçam nesta materia tendências, principios e processos que resultam não só em desamor dos que de nós dependem imediatamente, mas até na instabilidade e muita dissipação da própria riqueza. «Imaginamos que «sustentamos» os trabalhadores gastando dinheiro com as cousas que êles fazem. Ora nenhum gasto de dinheiro ou consumo de fazenda fornecida em troca de dinheiro gasto sustenta alguem, a não ser a pessoa que adquire a fazenda e a consome. Trabalhadores e indústria são em geral sustentados só por um modo--pela criação actual de riqueza real para êles usarem e viverem dela. Se cavamos um campo e criamos trigo, acrescentamos realmente o sustento de todos os trabalhadores. Se meramente compramos o trigo e o comemos, só a nós nos sustentamos, à custa de quem criou o pão, seja êle quem fôr. E isto aplica-se a toda a compra ou gasto. Muita gente tem dificuldade em o conceber; mas a materia é bastante simples. Os dois processos de fazer riqueza, em a nossa capacidade de produtores ou trabalhadores, e de a consumir, em a nossa capacidade de gastadores de dinheiro, são exactamente análogos aos dois processos de cosinhar os alimentos e de os comer depois de cosinhados. Se o nosso cosinheiro nos prepara um jantar, a seqùência natural dos acontecimentos é que nós ou outros o havemos de comer. Mas comer o jantar não habilita, de modo algum, o cosinheiro a preparar outra refeição, e não o sustenta, a êle, nem à sua cosinha. Isso só se consegue fornecendo-lhe novos materiais para cosinhar. Ou podemos comparar a despeza á explosão de uma arma. A explosão é a conseqùência natural da carga, e foi para isso que a arma foi carregada; mas a explosão não concorre para carregar de novo a arma, isso só se obtem produzindo novas munições. Se a explosão tem algum valor, pertence êle a um resultado totalmente diferente, que por sua vez está inteiramente dependente do seu fim ou direcção. Assim com os nossos gastos. Podem ter efeitos benéficos, se são bem dirigidos, isto é, na proporção em que procuram satisfazer as necessidades reaes de gente realmente necessitada. Mas, só pelo facto de gastar, não contribuem no quer que seja para sustentar a gente cujas mercadorias compramos. Se pretendemos sustenta-la, então toda a nossa pretensão deve assentar no facto de que previamente ganhamos por um trabalho util o dinheiro que gastamos e por êsse trabalho acrescentámos realmente os recursos dos outros trabalhadores. Gastando o dinheiro ganho, não acrescentaremos o quer que seja a êsse bom resultado. «Assim, não ha virtude alguma em a nossa acção como gastadores... Muitas vezes, pelo contrário, haverá um resultado definitivamente pernicioso onde fôr excessiva a soma do que se comprou e consumiu. Porque os trabalhadores ou os fabricantes de riqueza são em numero limitado, e, com todo o seu duro trabalho, a soma de cousas que podem fabricar, ou a soma de serviços que podem prestar em um ano, é severamente limitada, mesmo que possa crescer gradualmente à medida que os anos vão correndo. E em uma terra que de modo algum anda inundada de mel e de leite, nenhum individuo e nenhuma classe pode tirar com muita largueza da provisão total produzida sem deixar algures uma falta. Isto é por tal forma verdadeiro e obvio que podemos ir até afirmar que por cada cem libras que gastamos, além das primeiras quinhentas ou seiscentas libras dos nossos rendimentos, ha necessariamente algures alguma familia da nossa comunidade coagida a viver com menos de duas libras por semana, muitas vezes com menos de trinta ou de vinte e cinco _shillings_. Ora nos tempos _bons_, quando o clamor dos indigentes não é muito alto, nem de longe atentamos nisto, e por conseguinte gastamos de coração leve os rendimentos. Mas vem uma crise e reflectimos; vagamente sentimos a relação entre a nossa abundancia e a indigência dos outros, suficientemente para nos inclinar a não dispender o nosso dinheiro como antigamente». Nestas lucidas asserções, que são afinal versiculos capitais de um breve e fecundo evangelho moral e económico, com tão elevado talento definido por um espírito e por um caracter manifestamente superiores, não quer o seu autor que se lhe atribua a «afirmação de que os nossos habitos de gastar são egoistas, ou indignos, ou extravagantes, ou maus, salvo no caso unico em que êles involvem realmente um perigo grande para o sistema actual da indústria. E que êles na verdade são nêste sentido habitos maus, está provado pelo facto--e êsse é o sinal de todo o habito máu--de que presentemente involvem todo o sistema em dificuldades, mal sofreram um choque. Por êste modo, pelo perigo da instabilidade que lhes é inerente, êsses habitos de gastar da gente fina parecem ser elemento e parte daquele arriscado processo em que se procura equilibrar a pirâmide da indústria no vertice dos desejos e necessidades de uma pequena classe, em vez de a assentar na larga base das necessidades universais». Não são «cousa simples» as obrigações de caridade com os nossos dependentes, e muito menos o são o conhecimento e arte de a exercer pela nossa acção em criar a riqueza onde um proceder leviano apenas se imagina autorizado a dispendê-la, na boa fé de que para isso tem moralmente inteira liberdade, isenta de grave responsabilidade pessoal. Mas, se houve beneficios na guerra e nos transes por que nos faz passar, a seu activo teremos de lançar as profundas lições sociais que nos deixa e o poder, senão o terror, com que nos obriga a escutá-las. Porque, no dizer de um jornalista inglês, «a guerra ensinou a certa gente, pela primeira vez, exactamente o que significa viver em uma sociedade. Mostrou que a nossa sociedade, em lugar de estar bem organizada, está mal organizada e frouxissimamente unida, e quanto as pretensões individuais estão em conflito com os interesses de todo o povo. Daí vem que a guerra está desenvolvendo uma agudissima série de problemas sociais» e, ousarei acrescentar, daí vem conjuntamente que, sendo a maior das calamidades, poderá resultar em uma fecunda angústia, se por sua instigação houver o bom senso e coragem de dar a êsses problemas as soluções evidentes que êles reclamam, e que de resto continuamente conhecemos e entrevemos pela voz de interpretes eloquentes. Viu o nosso tempo uma terrivel desgraça que não pôde evitar e o tortura; mas viu tambêm uma geração que, esclarecida como nenhuma outra igual que a história nos mostrasse, sabe julgar conscienciosamente as suas dôres e delas tirar ensinamento para emendar os seus êrros e para acautelar a justiça e a paz das gerações futuras. Honesta e delicadamente se apressa a aproveitar e meditar as lições de uma experiência cruel. É isso a sua honra e o seu dever, e é afinal o interesse imediato do seu contentamento e felicidade. O Cavador e o Profeta Algum tempo meu criado, hoje apenas um companheiro da minha morada, porque a edade e as enfermidades o isentaram de toda a obrigação de assiduidade e serviço efectivo, o velho que vive comigo é um caracter irreductivel em seus moldes. Feito à lei da natureza, do que ela deu e do que o destino quiz, em uma liberdade intransigente, por uma rebeldia infinita constituido fóra de toda a pressão da vontade e intenções de estranhos, não há nada que o vergue, nem há contingência que o amedronte, nem mesmo força que facilmente o modere. O seu braço e a consciência são a sua fortuna, e isso lhe basta. Um secreto orgulho o domina e conduz. Tem a sua aspiração, sua crença, regra e necessidade, a sua linha, como o modernismo usa dizer, e dela não se afasta. Não há insinuação alheia que lhe modifique a opinião ou que lhe abrande a teimosia; e o vigor da afirmação é tanto mais seguro quanto é pura e estreme a ingenuidade. Não conhece duvidas, como por certo as ignoram as raizes que alimentam os lirios e as sarças que se cobrem de espinhos. Cavador e servo por condição e nascimento, desde a infância até à velhice adeantada e insubmissa em que vae arrastando os anos, é uma destas creaturas que nasceram para tirar da terra o pão com o suor do rosto, comendo as migalhas e abandonando o principal aos seus senhores, e que, por sua grandeza e nobreza, não maldizem semelhante estado e nem sequer o evitam. Toda a metralha filantrópica e seus condimentos e acessorios sociológicos e socialistas, que se traduzem em bibliotecas infindas e em odios, guerra e sangue, toda essa ambiciosa disputa e repartição da riqueza, e seus venenos, astucias, e engenhosas e subtis ilusões, tudo isso se teria afigurado futil e vão a êsse velho pobre, se êle fôsse capaz de definir em teses, discursos e combates o que lhe vai no íntimo. Subjugado, provavelmente, por aquele mesmo principio que não permite que as rolas discutam o motivo pelo qual umas andam magras e outras gordas e uns ninhos estão altos e outros baixos, uns em logar seguro e outros em risco, por êsse motivo se julgaria impedido de se atormentar estudando as desgraças do mundo e a sua redenção. Para o meu cavador, a servidão seria uma cousa que «acontece», como o crepúsculo, a aurora, a chuva e o vento. Umas vezes seria doce e outras penosa, umas vezes seria a fartura e outras a fome, e invariavelmente seria lógica e aceitável, porque nessa natureza com que lida de perto, não encontra injustiças, nem resignações, nem sofismas, e apenas há uma ordem eterna e intransgressivel que só a natureza determina e conhece. Um fatalismo vago será talvez um dos bordões da humildade. E talvez fosse por isso que o velho tomou tanto amor à sua condição. A melhor condição seria a primeira e a mais proxima para que o destino o lançára. Porque se deixou induzir na tentação de descobrir onde mora a riqueza e onde se nos entrega, foi duas vezes a Lisboa, a pé, por êsses caminhos fóra, vendo terras e homens, transpondo descuidadamente as sessenta leguas que tinha a calcar da aldeia até à cidade. Mas em nenhuma dessas aventuras encontrou cousa que o prendesse, deleite que o seduzisse, luxo que o deslumbrasse ou salario que o convencesse. E depressa voltou à enxada e à escravidão do amo a quem cavava as terras, e que em troca lhe dava o pão. A experiência do mundo, quando o via de perto, inflamava-lhe logo um obstinado desejo e contentamento da pobreza. Maior aventura que as duas jornadas a Lisboa foi o casamento. Porque tambêm se casou; tambêm um dia foi à egreja «maila a sua açucena», como diz, rememorando com uma pitoresca ironia e sorridente indulgência êsses malfadados passos. Deu-se mal. Era de prevêr. Não sei o que seria a mulher; não creio muito que primasse pela doçura. E, como êle pelo seu lado não personificava a brandura nem a flexibilidade, o conflicto era certo e o apartamento a sua conseqùência. Pesava-lhe pouco êsse apartamento em que rehavia a independência, dando-a tambêm à mulher e aos filhos. Porque, como sôbre os bens não havia questão, como, prescindindo dos poucos que possuia, se conformava maravilhosamente com as suas propensões, o divórcio tornava-se, e de facto se tornou, em extremo simples. Não precisava de juiz nem escrivão. Era deixar à mulher e aos filhos a casa, o lar, o campo, e mais toda a poesia, graças e confortos que lá não encontrou, e mais todas as inquietações que lá o mortificaram, e ir-se êle embora, a cavar nas terras de alguem que lhe desse o pão e o socêgo. E foi o que êle fez, serenamente, tranquilamente, em uma tranquilidade de vencedor. Deixou-lhes tudo, sem mesmo reservar algumas moedas que herdára de um fidalgo a quem serviu por muitos anos e que, consciente da sua condição e da bondade a que ela obriga, contemplou no testamento todos os seus criados e servidores. Separou-se da mulher e mais dos haveres o cavador rebelde. A felicidade e a paz, pagava-as com a isenção; não as pressentia nas cobiças, por elas não se afreimava. Cavar e servir, eis a suprema felicidade à qual obedecia. Não se detinha a verificá-lo, nem o confessava, nem o apregoava, nem talvez o pensava claramente. Mas demonstrava-o em seu sangue e exemplo, o que seria a mais penetrante arte de persuadir. Cavar, servir... e tambêm amar. Servir com um tão arrebatado desprendimento já significaria muito amor, mas êsse amôr, que lhe andava no ânimo, tinha traducção ampla e ardente em um outro modo. Morria pelos animais. Afagava-os, beijava-os, cuidava-os carinhosamente, com um zêlo terrivel. Por êles se afligia, irritava-se e praguejava, se o pasto era escasso ou se a avareza do amo ou do feitor não alargava as rações até onde era mister para uma ostentosa prosperidade do estábulo. Algum anjo ou demónio lhe mandaria guardar para aqueles seres mudos e pacíficos a afeição e a dedicação que os homens pagavam mal; advinhava-lhes superioridades na inconsciência, e com ternura as reconhecia. Entretanto, acrescentava em seu espírito e lembrança o compêndio dos ensinamentos da vida, e, pobre de bens porque os outros lhos tinham levado, não era indigente de opiniões. Tinha a sua filosofia, consistente, sólida, de largos e singelos alicerces, e de resto rematadamente singular. Assim, entre as lições que lhe ouvi, aprendi que no casamento a questão de idade só importa ao homem. A mulher a todo o tempo póde casar; o homem é que precisa de ser novo. --«Porque?» --«Porque?!... Ora essa! Porque o homem é que tem de _o_ ganhar, precisa de ter fôrças para isso. A mulher é só para o governar e gastar». E trabalhava, trabalhava continuamente, e sempre que póde ainda trabalha, com uma tenacidade indomável. Não é para se enriquecer nem para enriquecer o amo; as riquezas e o amo confunde-os na mesma indiferença. É por trabalhar; é o trabalho pelo trabalho, impulso essencial, significação única da vida, única razão de ser da existência na terra. Cria como as rosas florescem. E no seu sistema moral e económico trabalhar é usar dos braços para criar o pão. Não concebe outra cousa. Austeridade, ascetismo, de todo os ignora, como ignora ou despreza a poupança e a previdência. Onde é que êle viu isso nas plantas que semeia e nos animais que estremece? Não póde, evidentemente, caber na sua lógica o que não coube na lógica da natureza. Por isso a dissipação da taberna e do alcool, exaltando-lhe os nervos e extasiando-o, lhe parecerão um facto tão natural e legítimo como as correrias dos potros na pastagem. Quanto tem é para beber, e a sua mágua é que eu lhe dê muito pouco para êsse fim. Se lhe dizem que é um vicio e a causa da sua miséria, recebe com um desdem altivo a advertência. No seu conceito, a embriaguez é apenas uma alegria, abençoada como todas as alegrias. Quem sabe?!... Talvez na rudeza da sua ingenuidade, inflamada pelas provações do mundo, tivesse fechado a abóbada de uma grande filosofia. A vida seria uma obrigação e uma orgia, uma disciplina e uma liberdade, uma sujeição de toda a nossa actividade ao esfôrço de criar o pão e uma independência de todos os instinctos na suma vibração das suas energias--uma religião em que o mesmo amor, e por igual, servia a Deus e aos homens, à terra e aos céus, porque a terra e os céus eram as duas grandes verdades iniciais, duas emanações sublimes de um só espírito misterioso. Ora eu gosto de ouvir êsse homem. Sendo maior do que eu, tendo feito aquilo que eu não fui capaz de fazer, tendo vivido na intensidade de vida que eu não fui capaz de atingir, indubitávelmente há-de saber o que eu não sou capaz de saber. Perguntei-lhe pela guerra. Que me dizia desta loucura de matar que cobre de sangue o mundo? --«A guerra», respondeu-me, «é por causa dos que querem comer sem trabalhar. Olhe, quando eu vou à cidade e vejo por lá os soldados, bem agasalhados, bem mantidos, bem engraixados, escovados e a luzir, digo comigo que é essa gente que faz a guerra. Porque quer andar assim, de costa direita, quer comer sem trabalhar». Ai está uma opinião! Opinião de um cavador, que o é, honestamente, há mais de sessenta anos; mas, sem embargo, uma opinião. E como tem seus apóstolos, como há-de ser prégada na taberna, entre os cavadores, _caveant consules_! tomem nota os generais e os seus imperadores, andam-lhes inimigos na fortaleza. Disse-me Tolstoi, quando o visitei, que da Russia emigram familias inteiras, e em uma simples carroça levam todos os seus bens, e vão muito longe, à Sibéria, quasi à China, a fazerem as colheitas. Depois por lá ficam, por lá engenham suas cabanas, criam uma lavoura nos desertos incultos, e «são felizes até que os governos as descobrem para lhes pedir impostos e os filhos para a guerra». Dar-se hia o caso que o cavador, em toda a sua obscura ingenuidade, e o génio, em todo o seu resplendor de glória, soletrassem ambos as mesmas palavras nas mesmas acções? Foi o cavador que falou pela bôca do profeta ou foi o profeta que incarnou no cavador? E, se se juntaram e identificaram, que mundo novo prometem a sua conformidade e consubstanciação em uma única visão?!... Aparições Mazzini É condição ingénita dos homens sofrer para conhecer. A experiência e o que ela ensina não passa sem máguas. A dôr ilumina e revela o caminho da salvação. Porventura tanto nos elevamos e robustecemos, no entendimento e no caracter, pelos desenganos dos erros e pelas atribulações que eles importam como nos cegamos, desvairamos e enfraquecemos pelos bafejos de uma fortuna fácil e prolongada. Se benefícios teve a guerra, o mais alto seria acordar, até às suas mais remotas profundezas, a consciência dos povos, o sentimento do seu destino e responsabilidades na vida. Perdidos nas mais pungentes incertezas, em labirintos de ruinas inundadas de sangue e habitadas pela morte, pela fome e pela desgraça, perguntam entre agonias se na terra haverá refúgio de tão agudas penas e calamidades; anciosos, interrogam os céus e a imensidade, rogando que lhes mandem uma voz que seja o pregão do resgate, um alento onde respirem a fortaleza e paz. Profetas que a embriaguez das paixões votára à mudez dos seus tumulos e a quem o seu tempo desconhecêra ou apenas suspeitára a grandeza, erguem-se das cinzas aureolados de poderes divinos. Á confusão tenebrosa do tumulto em que os homens se despenham nos abismos que a própria loucura cavou, sucedem aparições que os guiam na estrada da redenção. São remorso e esperança, remorso da infidelidade em que as esquecemos e que pagamos cara, e esperança da glória a que nos conduzem. Poucos dias apóz a declaração da guerra, encontrei em uma folha inglesa o nome de Mazzini. Como o mais inculto, mal conhecia essa sombra quasi apagada pela obsessão do realismo e pela torrente de realidades que haviam dominado os espíritos e edificado os impérios do nosso tempo, alvoroçando o assombro da nossa imaginação e inflamando-nos traiçoeiras vaidades. Revolucionário, poeta e sonhador, incarnação de idealismos que haviam ganhado fama de estéreis e perigosos, e a negação daquela espécie de homem prático em que a sordidez se converteu em suprema virtude, Mazzini jazia no manso olvido e proscrição a que uma época toda enlevada e confiada na ordem, na sciência, na razão e no positivismo havia votado a legião inquieta dos descontentes, crentes e videntes, pensadores rebeldes e apóstolos intemeratos, à qual êle pertencera e dera todo o fulgor do seu génio. Ia na onda que varrera da nossa presença e da nossa fé as visões romanticas que um entendimento prático até aos aviltamentos da brutalidade usava acoimar de ridículas e vãs. Era surpreza que alguém desse bando exilado voltasse, e exactamente na hora em que menos deveria poder, quando a violência estava senhora do mundo e nêle corria solta, em momento sem dúvida nada favorável à contemplação de visões que o ferro e fogo não fôsse capaz de desfazer. Mas por isso mesmo que a surpreza me incitava, por isso mais depressa e atentamente corri a ouvir os clamores da aparição. Que dizia?[8] Em que arrebatamentos se exaltava e nos induzia?!... Não compreendia Mazzini a subsistência do mundo e da razão só por si, independentes de um princípio superior a que se subordinassem. O universo pertência a Deus. «A terra era apenas um degrau para os céus, uma linha no poema imenso do universo, uma nota na harmonia da ideia divina. Da conformidade das nossas obras com essa harmonia dependia» o triunfo final, toda a paz, toda a ventura, toda a dignidade e grandeza das sociedade humanas. Sendo um sonho, uma aspiração, uma essência impalpável, era isso a sumula, regra, condição da vida de todas as realidades em que a nossa vontade podia influir, o fundamento, único consistente, de todas as edificações que tentassemos construir. Quando o profeta cuidou de traduzir a fé na solução dos problemas do seu tempo e do seu país, no ardor de mártir a que consagrára a vida, sentiu que duas doenças corrompiam as classes que preponderavam no govêrno dos estados--«o maquiavelismo e o materialismo. A primeira, mesquinho disfarce de um homem grande mas infeliz, leva-nos para longe do amor e de uma franca, corajosa e leal adoração da verdade; a segunda, através do culto do interêsse próprio, precipita-nos no egoismo e na anarquia». Eram essas as doenças sociais e políticas que ameaçavam e embaraçavam uma renovação política da Itália, e que hoje, é tristemente manifesto, de todo perturbaram a fortuna da Europa. Por completo nos desprendemos da lei, e «não há vida sem uma lei. Onde a vida existir, existe em certo modo, conforme certas condições, sob uma certa lei. Uma lei de agregação governa os minerais; uma lei de crescimento governa as plantas; uma lei de movimento governa as estrelas; uma lei nos governa, a nós e à nossa vida, lei mais nobre e mais elevada do que aqueloutras, por isso que nós estamos superiores a todas as outras cousas criadas na terra. Desenvolver-nos, proceder, viver conforme a nossa lei, é êsse o nosso primeiro, e até mesmo o nosso único dever». A ordem do progresso é clara e evidente. Revela-se-nos pela história como pela consciência. Mostra-se na grande distância entre a crença do presente e a fé que foi a base da moralidade das gerações que nos precederam. «Os primeiros homens sentiram Deus, mas sem o compreenderem, sem mesmo procurarem compreendê-lo na sua lei; sentiram-no no seu poder, não no seu amor; tiveram uma vaga concepção de certa relação entre Deus e o homem, mas nada mais». Foi longa, durou dilatados séculos a insinuação do espírito que nos havia de levar a compreender que _há um só Deus e todos os homens são filhos de Deus_. Foi a promulgação destas duas grandes verdades que mudou o aspecto do mundo, e «só então o homem soube que onde encontrar um companheiro está um irmão, dotado de uma alma imortal como a sua, destinada a erguer-se ao seu criador, um irmão a quem deve amor, participação na sua fé, e auxilio de conselho e acção quando o carecer. Só então se ouviram nos lábios dos apóstolos palavras sublimes, proféticas de outras verdades contidas em germen no cristianismo, palavras ininteligiveis para a antiguidade e mal compreendidas ou desprezadas pelos sucessores dos apóstolos. Porque _da maneira que em um corpo temos muitos membros, mas não teem todos uma mesma funcção, assim, ainda que muitos, somos um só corpo em Cristo, e cada um de nós membros uns dos outros_. (S. Paulo, Ep. aos Romanos, c. XII, vv. 4, 5). _E haverá um só rebanho e um só pastor_ (Evangelho de S. João, c. X, ver. 16)». A política era a traducção dessa lei suprema no govêrno das nações, em toda a extensão dos princípios que daí se deduzem. Seria uma acção religiosa e moral, e jámais era lícito degradá-la em uma disputa de egoismos ou em uma convenção de interêsses. «O govêrno do pais tem de ser baseiado pelo nosso trabalho sôbre o culto dos princípios, não sôbre o culto idólatra dos interêsses e da oportunidade. Há países na Europa onde a liberdade é sagrada no intimo, mas sistematicamente violada externamente; povos que dizem que _a verdade é uma cousa e a utilidade uma outra cousa, que a teoria é uma cousa e outra a prática_. Êsses países teem necessariamente de expiar a sua culpa em longo isolamento, opressão e anarquia». A educação, que é a insinuação da lei e a integração das gerações na sua substância, assume, nesse sistêma, uma missão e poderes capitais. «O indivíduo é um renovo da humanidade, e alimenta e refaz a sua própria fôrça na fôrça da humanidade. Êste trabalho de alimentação e renovação opera-se pela educação, que directa ou indirectamente transmite ao indivíduo os resultados do progresso de toda a raça humana. Por conseguinte, não só porque é uma _necessidade_ da nossa vida, mas tambêm porque é uma espécie de santa comunhão com todos os nossos companheiros e com todas as gerações que viveram, isto é, que pensaram e trabalharam antes de nós, por isso carecemos de nos educar, o mais possível, em uma educação moral e intelectual que compreenda e cultive todas as faculdades que Deus nos deu, como semente para produzir fruto, e forme e mantenha um laço entre a nossa vida individual e a vida colectiva da humanidade. E para que êsse trabalho de educação se realise o mais rapidamente, e para que a nossa vida individual se ligue mais segura e intimamente com a vida colectiva de todos, com a vida da humanidade, por isso Deus nos fez essencialmente seres sociais. Toda a espécie de ser inferior póde viver por si, sem outra comunhão além da que tivér com a natureza, com os elementos do mundo físico. Nós não. A cada passo temos necessidade dos nossos irmãos; e não podemos satisfazer as necessidades mais simples da vida sem nos socorrermos do seu trabalho.» Infelizmente, estávamos e estamos longe de atribuir à educação o seu valôr religioso. Vai desvairada e em erro, semeiando muitos males e produzindo escassissimos e contaminados bens. «Hoje, na Europa, a _instrucção_, desacompanhada de um gráu correspondente de _educação_, é um grave mal; mantem a desigualdade entre as diversas classes de um mesmo povo e inclina o espírito ao calculo, ao egoismo, a compromissos entre a justiça e a injustiça, e a toda a falsa doutrina». Comunhão «é uma palavra santa. Ensinou aos homens que eles eram uma família única de irmãos em Deus, e uniu o senhor e o escravo no mesmo pensamento de salvação, na mesma esperança e no mesmo amor do céu». Símbolo da igualdade entre os homens, cumpre à humanidade desenvolver toda a verdade que nela se encerra. «A egreja não o fez e não póde fazê-lo. Tímida e incerta no seu começo, mais tarde aliada com os príncipes e com o poder temporal, embebida no próprio interêsse, com uma tendência aristocrática alheia ao espírito do Fundador, vagueou na estrada direita e retrogradou até diminuir o valor da comunhão, limitando-a para os seculares só ao pão, e reservando para os sacerdotes a comunhão nos _dois géneros_». «Não era materialista. Os moços de inteligência estreita e educação superficial, mas excessivamente inflamados e irritados contra um passado morto que ainda quer dominar o presente; cuja vaidade é lisongeada pela ideia da ousadia intelectual; que carecem de capacidade para descobrir naquilo que foi a lei daquilo que ha-de ser, são levados a confundir a negação de uma forma gasta da religião com a negação daquela religião eterna que é inata na alma humana. Neles o materialismo assume o aspecto de uma rebelião generosa, e muitas vezes é acompanhado pelo poder de sacrifício e pelo respeito sincero da liberdade. Difundido, porêm, entre os povos, o materialismo, pelo culto exclusivo do bem-estar material, tenta mais infalivelmente, extingue o fogo de um pensamento alto e nobre, assim como toda a scentelha de vida livre, prostrando-os finalmente perante a violência triunfante, perante o despotismo do _fait accompli_». Fôra êle que «em Roma extinguira toda a virtude republicana». Porque não era materialista, só acusava a egreja onde a julgava infiel à sua missão espiritual e divina; não porque ela se fundasse em uma missão que havia deixado de ser a aspiração da humanidade, a sua religião. Pois «a vida era uma missão, e a existência aquela parte dessa missão que nós temos a cumprir na terra. Descobrir, compreender e intelectualmente dominar aquele fragmento da lei divina que é acessivel às faculdades humanas, transmudá-lo em acção (até onde as forças humanas o permitem) aqui, onde Deus nos pôz, é o nosso fim, o nosso dever. Cada um de nós e todos nós estamos sujeitos ao esforço de incarnar na humanidade aquela porção de verdade eterna que nos foi dado perceber, de converter em uma realidade terrena tão grande parte do «reino dos céus», da concepção divina que repassa a vida, quanto nos foi dado compreender». Não era ingrato à egreja, «nem irreverente perante as suas grandes ruinas». Não esquecia «que lhe deviamos não só a ideia da unidade da família humana, da igualdade e emancipação das almas, mas tambêm a salvação das relíquias da nossa anterior civilisação latina». «A salvação do cristianismo e por êle a salvação da civilisação europeia, pela unidade da hierarquia durante um período de anarquia e trevas; o espírito de amor com os pobres e os párias aflictos da sociedade que inspirou os primeiros bispos e papas; a luta severa sustentada por êles em nome da lei moral contra o poder arbitrário e a ferocidade dos senhores feudais e dos reis conquistadores; a grande missão (desconhecida em nosso tempo por aqueles que nada sabem ou compreendem da história) cumprida por êsse gigante da inteligência e da vontade, Gregorio VII, e a fecunda vitória que êle ganhou em auxilio do govêrno do espírito sôbre as armas reais, do elemento italiano sôbre o elemento germanico; a missão da conquista civilisadora entre povos semi-bárbaros levada a cabo pela egreja; o impulso dado à agricultura pelos monjes durante os tres primeiros séculos, a conservação da linguagem de nossos pais, a época esplendida de arte inspirada no dogma, as obras eruditas dos beneditinos, o começo da educação gratuita, a fundação de instituições de benevolência, nossas irmãs de misericórdia»--tudo isso Mazzini lembrava e respeitava na vida da egreja. Mas acusava a egreja da «insania de pretender que um facho, aceso há desoito séculos para lhe iluminar a jornada atravez de uma única época, estava destinado a ser uma única luz no caminho do infinito». Acusava-a de «desconhecer a santidade da alma de Jesus, superior a toda a outra em inspiração e amor fraterno, transformando-o, a despeito dos seus mais sublimes pressentimentos, em um vulgar e eterno tirano das almas». Uma religião expirava, se perdia o poder de sacrifício. E o catolicismo «podia ainda, com o auxílio dos enganos dos seus ministros e da pompa dos seus ritos, juntar em volta de si o concurso numeroso de fieis, aparentemente dedicados, e assim continuar fazendo, emquanto a única escolha dêsses fieis está entre as recordações de uma fé, outrora grande e fecunda em bens, e as negações áridas de um materialismo embrutecedor. Mas pedissem a esses fieis para morrerem pela egreja e pela fé que ela representava, e não se encontraria entre eles um só mártir». «Não se enganasse a egreja! Em volta dela a fé agonisava. Como scentelhas derradeiras de um fogo que se apaga, a fé, em nossos dias, desfalecendo encontra expressão nas orações murmuradas perante os nossos altares, por força do hábito, em momentos breves e determinados. Evapora-se à porta da egreja, e não mais governa ou guia a vida quotidiana dos homens. Dão uma hora para os céus e o dia para a terra, para os seus cálculos e interêsses materiais, ou para estudos e ideias estranhos a toda a concepção religiosa». A fé em Deus determinava uma economia, uma constituição e uma repartição da riqueza, assim como determinava uma regra de liberdade e amor nas relações civís e políticas. Fôra ela que lentamente fizera crescer «no espírito dos homens o sentimento do dever social com as classes trabalhadoras», que se tornára preponderante na política do nosso tempo e fizera da liberdade de concorrência um espectro de crueldade. «Para aqueles que nada possuem, para aqueles que são incapazes de poupar o quer que seja no salário quotidiano e não teem, por conseguinte, cousa alguma para começarem qualquer empreza comercial, a liberdade de concorrência era uma mentira, como a liberdade política era uma mentira para aqueles que por falta de educação, instrução, oportunidade e tempo não podem exercer os seus direitos». O progresso seria essencialmente um estado de consciência. «Realiza-se passo a passo, por virtude de leis que nenhum poder humano pode dominar, por _desenvolvimento_, pela _modificação_ perpétua dos elementos que manifestam a actividade da vida. Muitas vezes os homens, em certas épocas, em certos países e sob a influência de certos erros e prejuízos, deram o nome de elementos, de condições da vida social, a cousas que não teem a sua raiz em a natureza, mas sómente nas convenções e costumes de uma sociedade iludida, e que desaparecem fora dessa época particular ou além dos limites próprios dêsses países. Mas podemos descobrir quais são os verdadeiros elementos inseparáveis da natureza humana, interrogando os instinctos das nossas almas e verificando em face das tradições de todos os tempos e de todos os países se êsses instinctos nossos são como sempre fôram os instinctos da humanidade». E, evidentemente, desde que o progresso é êsse «desenvolvimento», sujeito a leis fóra do alcance do poder humano, o remédio para a deplorável condição presente não podia encontrar-se em qualquer organização geral arbitrária, feita segundo o plano de certo espírito e estabelecida por decretos. Tudo isso resultava em ilusões por diversos modos destinadas a naufragarem e a dissiparem-se. O remédio tinha de ser qualquer outra cousa que não significasse a criação de uma humanidade nova, mas que continuasse a humanidade nas suas tendências essenciais e indestructiveis. «Algum dia fomos _escravos_, depois _servos_, depois _assalariados_; não tardará que sejamos, se o quizermos ser, livres produtores e irmãos na _associação_--associação livre e voluntária, por nós mesmos organizada em certas bases, entre homens que mutuamente se conhecem, amam e estimam, não a associação obrigada, imposta pela autoridade que governa e ordenada sem respeito pelos laços e afeições individuais, tratando os homens mais como máquinas de produzir do que como seres de livre e espontânea vontade». Só pela renovação moral dos homens se alcançará a renovação das sociedades. Essa é a condição de toda a reforma social. O progresso só é eficaz e duradouro se o fundou a capacidade de progredir. «A sorte de um homem não se altera renovando e embelezando a casa em que êle vive. Onde só respira o corpo de um escravo e não a alma de um homem, todas as reformas são inuteis; a morada limpa, luxuosamente mobilada, é um sepulcro branco, nada mais». «Só os princípios edificam». «Onde quizermos realizar um dos grandes feitos chamados revoluções, temos sempre de ir ao conhecimento e à pregação dos princípios. O verdadeiro instrumento do progresso dos povos tem de se procurar no factor _moral_». Não suprimiremos o factor económico nem é possível suprimí-lo, mas subordinámo-lo ao factor moral, «porque fora do govêrno da sua influência, desligado dos princípios e abandonado às teorias do individualismo que hoje o governam, resultará em egoismo bruto, na luta perpétua entre homens que devem ser irmãos, na expressão dos _apetites_ da espécie humana». A cada estado do progresso devia corresponder «uma melhoria positiva da condição material do povo»; mas sustentava que «os interêsses materiais não podem desenvolver-se sósinhos, dependem dos princípios, não podem ser a _mira_ e o fim da sociedade. Porque sabiamos que semelhante teoria destrói a dignidade humana, porque nos lembramos que, quando o factor _material_ começou a apossar-se de Roma, e o dever com o povo se reduziu a dar-lhe _pão e jogos_, Roma e o seu povo apressaram-se na própria destruição; porque viamos hoje em França, na Espanha, em todos os países, a liberdade calcada aos pés ou atraiçoada, precisamente em nome dos interêsses comerciais e daquela doutrina servil que separa dos princípios o bem-estar material». São «as ideias que governam o mundo e os seus acontecimentos. Uma revolução é a passagem de uma ideia da _teoria_ à _prática_. Digam os homens o que disseram, os interêsses materiais nunca causaram e nunca causarão uma revolução. A pobreza extrema, a ruina financeira, a tributação opressiva e desigual, podem provocar levantamentos que são mais ou menos ameaçadores e violentos, mas nada mais. As revoluções teem a sua origem no espírito, nas próprias raizes da _vida_; não no corpo, no organismo material. Na base de toda a revolução há uma religião e uma filosofia. É uma verdade que pode provar-se por toda a tradição histórica da humanidade». Acreditassem os seus camaradas revolucionarios da Italia «nas palavras de um homem que, durante trinta anos, estudou o curso dos acontecimentos na Europa e na hora do triunfo viu perdidas pela imoralidade dos homens as emprezas mais santas e uteis. Não venceriam senão _tornando-se, êles mesmos, melhores_; não conquistariam o exercício dos seus direitos senão _merecendo-os_ pelo sacrifício, pelo engenho e pelo amor. Se os procurassem em nome de um dever cumprido ou para ser cumprido, alcançá-los hiam; mas, se os procurassem em nome do _bem-estar_ que os materialistas lhes tinham ensinado, apenas alcançariam triunfos momentaneos, seguidos de desilusões tremendas. Atraiçoavam-nos aqueles que lhes falavam em nome do bem-estar, da felicidade material. Tambêm êsses procuravam o seu _bem-estar_ e para o obterem queriam unir-se com eles, como um elemento de fôrça, emquanto tinham obstáculos a vencer; mas, logo que com o seu auxílio tivessem obtido o bem estar, abandoná-los hiam para que tranquilamente podessem gozar a conquista. Era essa a história do último meio século e o nome dêsse meio século era _materialismo_». As sociedades nunca poderiam renovar-se pelo conhecimento, estudo e organização dos interêsses económicos. «As classes abastadas, no conforto da sua prosperidade, nunca experimentam privação ou sofrimento. Por vezes, vêem a miséria do pobre, mas facilmente se habituam a considerá-la uma triste _necessidade_, e deixam às gerações futuras o cuidado de lhe encontrar remédio. A indiferença e o esquecimento são doces para o homem que se sente no santuário da sua família, cercado de faces sorridentes, emquanto lá fóra sopram as rajadas do inverno e a neve, ligeira e bela, lhe bate nas vidraças da janella dupla. Esperareis erguer da sua apatia estes favorecidos do mundo pela simples expressão da _situação económica_ e do que deva substituí-la em uma sociedade bem organizada? Esperareis arrancá-los do seu repouso egoista meramente pela análise do que acontece em uma esfera na qual eles nunca penetraram? Talvez em teoria aprovem as vossas doutrinas utilitárias; não lhes peçam, porêm, que promovam a sua aplicação. Porquê? Falam-lhes em nome de _interêsses_. Não é o gozo o primeiro dos interêsses? E êles gozam». A nacionalidade e o patriotismo que a sustenta, serve e fortalece, será tambêm um facto de consciência moral e religiosa e nunca, por mais habilmente desfigurada que ela seja, pode fundar-se e manter-se pela delimitação do território, pelo agregado e conjugação das fôrças económicas e por qualquer combinação de actividades políticas. «A nacionalidade é a crença em uma origem e um fim comum. Se hoje fôr fundada em um interêsse, pode ser derrubada amanhã por outro interêsse mais ousado e mais poderoso». «Só quando o evangelho da fraternidade de todos os homens de uma nação fez da alma santuário de virtude e amor, quando a grande concepção da nacionalidade deixou de se encontrar reduzida a proporções mesquinhas, quando procura para base dos seus direitos alguma cousa mais que o interêsse material, interêsse que sempre tem o seu rival... só então teremos uma nação como nunca será possível tê-la dos sofistas que podem achar uma nacionalidade sem Deus». O progresso é um acto de fé. «A cada passo no pensamento religioso correspondia um progresso na vida civil». «Deus assim o quer» seria o grito eterno de todo o movimento que tem «por fundamento o sacrifício, por instrumento os povos, e por fim a humanidade». «O pensamento religioso é o alento da vida da humanidade, a um tempo a sua vida e alma, o seu espírito e o sinal externo. A humanidade só existe na consciência da sua própria origem e no pressentimento dos seus próprios destinos». Fora do trabalho da reforma moral «toda a organização política é estéril», e é ilusão esperar triunfos se «do nosso trabalho banirmos a ideia religiosa». «Só a consciência liberta os povos». «O elemento religioso é universal e imortal. Em toda a grande revolução está marcado o seu sinal, revela-o na sua origem e fim». Acreditava «em um Deus, autor de quanto existe, o pensamento absoluto vivo, de que o nosso mundo é um raio e o universo a incarnação». Acreditava em «uma lei, geral e imutável, que constitue o nosso modo de existir, que compreende toda a série possivel de fenómenos e exerce uma influência continua sôbre o universo e sôbre tudo aquilo que êle contêm, no seu aspecto físico como no seu aspecto moral». E a lei da vida, para Mazzini, era por igual essencial e simples. «Cristo disse:--«Amae primeiro a Deus e amae-vos uns aos outros com afeição fraterna». E disse tambêm:--«Entre vós será o primeiro aquêle que fôr o servo de todos». Toda a essência do cristianismo se compreende nestas palavras. Unidade de fé, mútuo amor, fraternidade humana, actividade nas boas obras, a doutrina do sacrifício, a afirmação da doutrina da igualdade, a abolição de toda a aristocracia, o esforço de perfeição no indivíduo e a liberdade, sem a qual nem o amor nem a perfeição podem existir--tudo assim se resume naqueles dois preceitos». «Toda a revolução social é essencialmente _religiosa_. Toda a época tem a sua _crença_. Sem unidade de fé, a associação é impossivel; prégar a humanidade, a pátria, o povo, essas grandes fórmulas da associação que superiormente dominam o nosso tempo, emquanto negamos ou despresamos o _sentimento religioso_, é desconhecer a significação dessas palavras, querer o fim sem os meios, a obra sem os instrumentos necessários. Como fôrem as nossas crenças, assim elas nos hão-de dar a regra de acção». Em seu coração «amava a visão de uma fé, não de uma escola». Os direitos em que a Revolução Francesa se fundou, involviam a mais traiçoeira das aspirações de uma sociedade. Foi glória do Profeta, talvez a mais alta das muitas que o coroaram, a intuição e o ardor com que opôz o dever ao direito, em um momento em que apaixonadamente se combatia e morria pelo fetichismo do direito, sem que das hecatombes que provocou podesse resultar nem a fortuna nem a tranquilidade dos homens, arrastados de escravidão em escravidão, de miséria em miséria, de tormento em tormento, de incerteza em incerteza. Um erro inicial os transviava e perdia; ignoravam que «o unico padrão da vida é a ideia do dever, santa, inexorável, dominante». «Fazer da política uma arte e apartá-la da moralidade, como os estadistas e diplomatas reais desejavam, era um pecado perante Deus e uma destruição perante os povos. O fim da política era a aplicação da lei moral à constituição civil de uma nação na sua dupla actividade, doméstica e estranha. O fim da economia era a aplicação da mesma lei à organização do trabalho no seu duplo aspecto de produção e distribuição». «Não pregassem, não trabalhassem em nome de direitos que apenas representavam o indivíduo, mas em nome do dever que representava o fim de todos. Não havia direitos alguns, salvo os que eram conseqùência dos deveres cumpridos; podiam resumir-se em um só direito--que os outros cumpram comnosco o dever que nós cumprimos com êles. Não dissessem que a soberania está em nós. A soberania está em Deus. A vontade do povo só é sagrada quando interpreta e aplica a lei moral. Quando dela se afasta, é impotente ou nula e não representa outra cousa senão tirania.» «A sociedade de Rousseau, como a de Montesquieu, é apenas uma sociedade de seguros mútuos». Partindo da filosofia da liberdade individual, destituiu de fecundidade êste _princípio_ baseando-o, não sôbre um dever comum a todos, não sôbre a definição do homem como uma criatura social por essência, não sôbre a concepção de uma autoridade divina e de um designio providencial, não sôbre o laço que une o _indivíduo_ à humanidade do qual êle é um factor, mas sob a simples _convenção_, confessada ou subentendida». «Carecemos de ensinar não o _direito_, mas o _dever_, acordar para melhores cousas a natureza degenerada, a alma semi-exausta, o entusiasmo decrescente; carecemos de possuir a consciência do valor humano e da missão dos homens na terra, e por aí erguer a fôrça de proceder, que até agora está esmagada pela indiferença. E isso obra de princípios, de crença, de pensamento religioso, de fé. Foi a obra de Jesus. Não procurou êle salvar pela crítica um mundo moribundo. Não falou de interêsses a homens cujas almas estavam envenenadas pelo culto dos interêsses. Prégou no santo nome de Deus certas verdades até então desconhecidas. Estas poucas verdades que agora, desoito séculos depois da sua passagem, procuramos esforçadamente realizar, mudaram a face da terra». «Três cousas eram sagradas--tradição, progresso, associação». A tradição histórica tinha de ser considerada, «não com a ignorância presunçosa dos materialistas modernos, mas com a atenção reverente devida a uma representação da nossa vida colectiva, único padrão onde podemos deduzir e verificar a concepção da lei que a governa». A verdade encontrar-se hia no «estudo severo da tradição universal que é a manifestação da vida na humanidade». A humanidade, dizia, invocando e desenvolvendo o pensamento de Pascal, «é um homem que aprende continuamente. Os indivíduos morrem; mas a verdade que pensaram e o bem que produziram, não se perdem com eles. A humanidade junta-o, e os homens que passam sôbre as suas sepulturas aproveitam-no. Cada um de nós nasce hoje em uma atmosfera de ideias e crenças que são a obra de toda a humanidade antes de nós; cada um de nós traz inconscientemente algum elemento, mais ou menos valioso, para a vida da humanidade que se lhe segue. A educação da humanidade cresce como aquelas piramides orientais a que cada viandante junta a sua pedra. Passamos, viajantes de um dia, chamados a completar a nossa educação individual em outro lugar; a educação da humanidade brilha por scentelhas em cada um de nós mas o seu inteiro resplendor descobre-o lentamente, progressivamente, continuamente, na humanidade. De uma a outra tarefa, de uma a outra fé, passo a passo, a humanidade conquista uma visão mais clara da sua vida, da sua missão, de Deus e da sua lei». Onde a tradição e a intuição se completam e consubstanciam, «onde encontramos a voz permanente da humanidade harmonisando-se com a voz da nossa consciência, aí teremos ao nosso alcance alguma cousa com absoluta verdade». O homem não é, porêm, apenas o investigador da verdade. «É _pensamento_ e _acção_. As teorias podem modificar o primeiro; não podem criar o ultimo». E, fielmente obedecendo ao próprio espírito, em Mazzini confundiram-se o profeta e o homem da acção, o apostolado e a visão, o poeta e o revolucionário. Desde a adolescência selando com o sangue os juramentos da sua fé, conspirador e camarada certo em todas as inumeráveis e prolongadas revoluções que sonharam e fundaram a Itália unificada, muitas vezes o seu chefe audacioso e nobre, a sua alma, inspiração, e o seu braço executor, não houve risco a que se esquivasse, não houve penas que não experimentasse, desde o aturado exílio que em condições de pobreza, às vezes extrema, o apartou da família, da pátria e dos amigos, até à condemnação à morte e porventura à tentativa de assassinato que o perseguiram como milhafres. Não houve contrariedade ou ameaça que lhe vencessem o desprendimento e o ardor, uma vaga sêde de martírio. «Particularmente aborrecia o egoismo, tão popular com a gente de hoje. Não gastava o seu tempo cantando, orando e clamando a Deus que lhe salvasse a alma. Nem se entregava ao estudo e à cultura para lhe salvar o espírito. Sempre cuidava do espírito e da alma, mas era sempre do espírito e da alma dos outros». E «foi conspirador porque era muito fiel a Deus e ao Povo para que consentisse em os vêr atraiçoados, muito honesto para que vivesse submetido ao mal, muito bravo para que aceitasse a paz sem honra»[9]. Nem por isso lhe faltaram inimigos. Não podiam faltar a quem, na lógica inevitável dos princípios que se deduziam da sua fé, viu «classes perigosas nos eclesiásticos ociosos, de que há muitos mil, e nos ricos que com o seu dinheiro não faziam bem». Um instinto seguro os advertia de que quem tudo confiava do povo era naturalmente o adversário perigoso dos apanágios e privilégios que ensoberbeciam as aristocracias políticas e eclesiásticas. Cavour e Luiz Napoleão Bonaparte eram irmãos nos sentimentos com que detestavam Mazzini, e nem outra cousa se compadecia com o conflito de ideais que o amor do apóstolo e a ambição do aristocrata e do imperador em confronto necessariamente inflamavam. O profeta era apenas o éco da voz do cristianismo, e o cristianismo é a negação radical e a ruina de quantas aristocracias, hierarquias, divisões de classes e servidões o egoismo e a perversão dos homens teem inventado para contentar e engrandecer a paixão de mandar e as suas cobiças. Todos êsses sistemas de dependências morais, políticas e económicas partilharam daquela decadência das divindades pagãs que o monoteismo cristão confundiu e afugentou. Foram, na verdade, a tradução, em diferentes modos da vida social, de uma concepção moral e religiosa que caducou; foram deuses adorados por multidões submissas e inumeráveis, tiveram o seu culto, e absorvente, nos homens e nas cousas, no coração e nos bens da terra; mas, lentamente, outra e mais alta religião os destituiu do seu poder e prestigio, inspirando-nos e mostrando-nos uma outra razão da vida, adjudicando toda a nossa actividade intima e externa a um outro espírito. Não faz sentido ter e invocar como princípio de acção e dedicação o meu senhor», ou êle seja rei, ou sacerdote, ou fidalgo ou capitão de industria, quando senhores e vassalos de toda a casta e ordem e categoria todos teem de invocar e seguir o «seu Deus», aquêle perante o qual são irmãos igualmente humildes e sujeitos, dêle recebendo igualmente uma só e única lei de comunhão e coadjuvação. A obediência comum nivelou, e de facto destruiu só porque as nivelou, todas as gradações e distâncias em que as comunidades bárbaras se ordenaram e estratificaram, todos os despotismos e dogmatismos, mais ou menos benignos e fecundos, em que primitivamente se fundaram e viveram, tomando por eternidade a conveniência política ou religiosa de uma hora. Se em nossos dias essa ordem se mantém ainda por muitos modos e em diversos lugares, se persistem e são uma fôrça espiritual efectiva aquêles sentimentos de fidelidade, lealdade, dedicação e sujeição que eram seus vínculos e instrumentos, se essa ordem e todo o seu cortejo mental e espiritual sobrevivem quando já terminou a religiosidade íntima que era a sua essência e alma, é sómente porque, convertida em tradições políticas, estéticas, morais e eclesiásticas, senhora de altos monumentos e fortalezas que edificou, póde representar, e em muitos casos representa, uma utilidade prática, um sistema de conjunção e organização oportuno e cómodo, o remanescente de hábitos tardos em mudar e fiadores de uma estabilidade que é a primeira das condições de um desenvolvimento seguro. Mas, sem embargo, o império de Deus arruinou virtualmente o império dos cesares, desde os que são coroados em tronos magnificos até aos que teem seus escudos nos cofres à prova de fogo; e aquela simples virtualidade de um princípio é de efeitos práticos incomensuráveis e invencíveis. A consciência de uma escravidão eterna que a todos nos involve e subjuga, obliterou e perdeu aquela outra consciência de escravidões mortais, condicionadas, contingentes e transitórias, por longos séculos decisivas e supremas. Mazzini, que por ser fiel à primeira e lhe sujeitar a política denunciou as ultimas e as combateu e teve por calamitosas, não podia merecer-lhes senão anatemas. Assim devia ser. Vinha antes da sua hora. E condição do profeta. Tinha de ser apedrejado e consagrado pela aversão e pela ira dos fariseismos absolutistas e demagógicos que disputavam o domínio do seu tempo. Amaldiçoado dos despotismos, por isso que pedia a liberdade, não podia ser amado do demagogismo, por isso que invocava Deus, religião e dever perante aqueles que em sua estreiteza e cegueira sómente viam e queriam o mundo, a materia e os direitos do homem, quanto a sordidez sugere e aponta, e na sordidez e nos seus enganos e dôres tripudia, mente e se desfaz. Quando morreu, a 10 de março de 1872, deixava a terra inteira, e sobretudo a Europa, atónita e prostrada na adoração daquêle materialismo da fôrça e da riqueza que vencera em Sédan e nas escolas e academias, cimentando os alicerces de um grande império e aí se oferecendo à imitação das nações, emquanto se insinuava nos laboratórios e nas bibliotecas e aí endurecia o coração e envenenava o espírito das novas gerações. Nesse momento, Mazzini era um vencido; com o seu débil corpo se sepultavam as suas ilusões. Liberdade, religião e o povo que inconscientemente as guarda e serve, iam de tropel calcados e esmagados no culto de multíplices escravidões, no desprendimento de Deus e da sua lei, na fé vil de que o mundo era um banquete do qual só ao nosso ventre tinhamos a dar contas. Dêsse banquete do materialismo robusto e convicto, reflectido, astuto, sabedor e previdente, tão abundante de servos envaidecidos da própria servidão como pródigo de vitualhas e orgias e orgulhoso dos seus anfitriões desvairados na grandeza do mando e dos bens, Mazzini viu as primeiras horas gloriosas. Então, o apóstolo era apenas uma sombra que se afundava naquêle crepúsculo em que o romantismo sonhador anoitecia, escarnecido satanicamente dos fortes que o apontavam à irrisão e condenação das multidões, por muito ter amado a liberdade e os homens. Quarenta anos vão passados. O banquete degenerou no ajuntamento trágico das fúrias da morte e da ruina. E eis que Mazzini volta, na auréola da sua glória, a repetir-nos que sem Deus e sem dever e sem amor a terra será eternamente o inferno ensanguentado a que descemos. FIM. [1] Artigo do _Manchester Guardian_. [2] Principe Troubetzkoy, professor de Direito na Universidade de Moscou, no _Hibbert Journal_. [3]_Millgate Monthly_, março de 1915. Notícia de um discurso de Oliver Lodge, em Bradford. [4] Percy Dearmer. _Patriotism._ Humphrey Milford: Oxford Unversity Press, 1915. [5] William Temple. _Cristianity and War._ (Humphrey Milford; Oxford University Press, 1914). [6] E. Carpenter, _What will Stay the Plague?_ Artigo publicado em _The Christian Commonwealth_, de 9 de dezembro de 1914. [7]_The War and Democracy_, por W. Seton--Watson, J. Dover Wilson, Alfredo E. Zimmern e Arthur Greenwood. (Londres; Macmillan, 1912). Pag. 374 e seg. [8] O pouco que sei do pensamento e vida de Mazzini colhi-o principalmente, quasi exclusivamente, em dois volumes da _Everyman's Library_. (Londres; J. M. Dent & Sons), um que contêm versões dos escritos de Mazzini, _The Duties of Man and Other Essays_, e o outro que é a narração da sua vida e a crítica das suas doutrinas, intitulado _The Life of Mazzini_, escrito por Bolton King. Esses dois volumes constituem só por si uma lição moral e política e uma inspiração de dignidade e nobreza de um altissimo valor. Quem os divulgasse em linguagem portuguesa, prestaria excelente serviço às letras pátrias, e sobretudo à educação das novas gerações, tão desiludidas das seguranças e presunções materialistas que encontram no ocaso, como apressadas em descobrir novos e mais serenos horizontes para que se encaminhem. [9] H. Demarest Lloyd. _Mazzini and other Essays._ Pag. 4 e 6. Indice Prologo Convulsões dum enfêrmo Ganhos e perdas Revisão de valores Da arte de gastar e suas responsabilidades O Cavador e o Profeta Aparições DO MESMO AUTOR _Vozes do meu lar_, 1 vol. _Na paz do Senhor_, romance, 1 vol. _Reino da Saudade_, romance, 1 vol. _Via Redentora_, 1 vol. _Apostolos da Terra_, 1 vol. _Sonho de Perfeição_, romance, 1 vol. _S. Francisco d'Assis_, 1 vol. _José Estevão_, 1 vol. _Alexandre Herculano_, 1 vol. _Rogações de Eremita_, poemetos em prosa _Salmos do Prisioneiro_, 1 vol. End of the Project Gutenberg EBook of A Guerra, by Jaime de Magalhães Lima *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A GUERRA *** ***** This file should be named 26915-8.txt or 26915-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/6/9/1/26915/ Produced by Pedro Saborano. A partir da digitalização disponibilizada pela bibRIA. Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.net This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.